A VOZ DE CLAIRE
Ubirajara Godoy Bueno
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
Augusto dos Anjos
— França 18...
Xavier Duchamp viera numa caleça aberta, à fresca da noite, o que às vezes ajudava a atenuar o efeito da bebida, mas se sentia ainda entorpecido pelo vinho quando entrou em casa. Firmou-se no corrimão e subiu as escadas em direção ao quarto.
Claire, sua jovem esposa, dormia com um livro sobre o colo e parecia mais frágil e miúda sob o alto dossel de cortinas rendadas que lhe abrigava o leito. A luz das velas perfumadas, sobre a mesa de cabeceira, acentuava-lhe a palidez.
O marido observou-a com repulsa, enquanto retirava o paletó recendendo a tabaco e impregnado com os perfumes ordinários dos bordéis. Não acreditava na doença da esposa, apesar dos exames terem revelado uma grave moléstia do coração. A recomendação era para que ela evitasse, entre outras coisas, qualquer tipo de emoção, o que incluía as relações íntimas com o marido. Duchamp estava convencido de que se tratava de uma representação da mulher para livrá-la das obrigações de esposa, antes, um pretexto para se encontrar regularmente com o médico, Frederic Gouzer, com o qual estaria mantendo um relacionamento amoroso. Embora não houvesse evidências de tal conduta, Duchamp remoía em silêncio a convicção do adultério.
Proibir as visitas do médico ou enxotar a esposa de casa seria admitir publicamente a infidelidade. Já bastavam os comentários de que Claire havia lhe sido entregue em casamento pela exoneração de uma antiga dívida contraída pela família da jovem com o seu pai. Ainda que Xavier não fosse o tipo que zelasse devidamente pelo decoro de sua reputação, procurava, pelo menos neste caso, em defesa unicamente do seu amor próprio, manter alguma discrição. Contudo, a situação tornava-se intolerável à medida que repudiava a mulher com um ódio crescente.
Notou, sobre a mesa de cabeceira, uma nova prescrição de medicamentos, indício de que o médico estivera presente naquela noite. Via nisso apenas um artifício para enganá-lo.
Rosnou como um animal furioso e num impulso incontrolável lançou-se contra a mulher, apertando-lhe o pescoço com dedos vigorosos, iguais tenazes de aço comprimindo uma frágil porcelana. Claire debateu-se debilmente alguns poucos segundos, depois se aquietou com os dedos crispados na orla do cortinado.
Xavier recuou até o fundo do quarto. Com a manga da camisa, enxugou o suor que lhe inundava o rosto enquanto se dava conta do que fizera. Veio-lhe a imagem da própria cabeça decapitada pela guilhotina como um prenúncio de punição.
Transtornado, durante o resto da noite cuidou um plano para se livrar da culpa pela morte da mulher. Tão logo amanheceu, chamou por um dos empregados da casa que acabara de chegar, um jovem cavalariço que se apresentou imediatamente. Ordenou-lhe que fosse buscar o doutor Gouzer com a máxima urgência a pedido da senhora Duchamp. O empregado saiu às carreiras à casa do médico, distante alguns poucos quarteirões.
Xavier aguardou em seu escritório e não esperou muito tempo para ouvir os passos apressados do médico atravessarem a sala e seguirem em direção ao quarto. Cabia-lhe, agora, seguir cuidadosamente o que havia planejado. Apanhou um revólver e subiu as escadas. Ao cabo de alguns segundos mataria Frederic Gouzer.
Teria atirado numa tentativa malograda de salvar a esposa ao chegar em casa e deparar-se com o médico estrangulando-a num acesso de cólera. Este seria o seu depoimento. Ficaria estabelecido, pela hipótese mais provável, que ocorrera um grave desentendimento entre o médico e sua mulher; o motivo ficaria por conta das conjecturas dos inspetores e juizes ¾ anteviu, Xavier, o curso da diligência policial. Não descartou, entretanto, a possibilidade de recair sobre si a suspeita de ter atirado no médico e matado a mulher com as próprias mãos, após surpreendê-los em atitudes indecorosas. De qualquer modo, ele, o marido ultrajado pela jovem e infiel esposa, teria sido a maior vítima e nenhum juiz, em sã consciência, iria condená-lo - concluiu satisfeito. Após liquidar o médico, ele mesmo comunicaria o fato à polícia. O caso repercutiria por toda a cidade e seria inevitável um escândalo, mas era preferível toda sorte de humilhação à possibilidade de ser condenado à guilhotina - consolou-se Xavier.
Aproximou-se da porta do quarto, imaginando que naquele instante o médico já deveria estar debruçado sobre o cadáver, exasperado pela morte da amante.
Surpreendeu-se ao ouvir vozes que lhe pareciam vindas do interior do quarto. Apurou os ouvidos junto à porta procurando distinguir o teor da conversa. Apenas algumas poucas palavras lhe chegaram distintas, mas foi possível reconhecer a voz de Claire:
— ... um sonho horrível, como se algo me sufocasse — disse a mulher.
Xavier deduziu que a esposa tinha apenas desfalecido e não se dera conta do que realmente acontecera. Levou as mãos à cabeça, meneando-a com uma expressão mista de incredulidade e assombro. Procurou continuar ouvindo a conversa entre a esposa e o médico, mas só conseguiu distinguir um murmúrio ininteligível. Desceu as escadas e voltou para o escritório ainda perplexo pelo que acontecera.
Ocorreu-lhe que a diferença de tempo entre a morte da mulher e a do médico, caso o seu plano fosse consumado, seria facilmente percebida pela polícia. Recriminou-se por não ter atentado antes a este detalhe, contraditório à sua versão e que lhe comprometeria seriamente. Felizmente, o novo curso da situação fora providencial. Não tivesse Claire recobrado os sentidos, não tivesse escutado sua voz, o médico já estaria morto — pensou Xavier aliviado, voltando o revólver na gaveta de uma escrivaninha.
Exausto, estirou-se numa poltrona do escritório. Ruídos de passos na sala indicaram-lhe que o médico retirava-se da casa com a mesma pressa com que chegara.
Os últimos acontecimentos causavam-lhe a impressão de algo irreal. Ter ouvido a voz de Claire, cuja morte pareceu-lhe tão evidente, mostrava-se agora inverossímil. A loucura absoluta.
Mas não estava louco e Claire estava viva, falou para si.
— Viva! - repetiu mais alto, como se buscasse convencer a própria razão.
Uma sensação de inquietude e desconforto pareceu avolumar-se rapidamente para um sentimento insuportável de horror. Tentou sorrir, zombando de seus temores, mas o estupor do rosto freou-lhe o riso. Melhor seria ir ter com a mulher.
Numa carreira desesperada tomou o caminho do quarto.
Lá estava o corpo inerte de Claire. Os dedos rígidos permaneciam crispados na orla do cortinado, os hematomas no pescoço maculavam grotescamente a palidez da morta.
Xavier observou atônito o cadáver da mulher. Saiu do quarto e sentou-se na escada, com a cabeça entre as mãos, prostrado pelo horror que lhe fustigava a alma.
Dois policiais, conduzidos pelo doutor Gouzer, irromperam na sala principal.
Xavier manteve-se indiferente à presença dos três homens. Ainda lhe ressoava a voz de Claire.
* * *
DATA DA PRODUÇÃO: Março/1996 — CRÉDITO: Conto classificado em 1o lugar no Concurso Literário 2008/2009 da Academia de Letras da Grande São Paulo – Prêmio ALGRASP. — PUBLICAÇÃO: TAMISES 07 (2009) – Revista da Academia de Letras da Grande São Paulo — REGISTRO: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No 205.836 - Livro 356 - Folha 496 - Data: 21/07/2000.
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