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sábado, 7 de maio de 2011

PERFECCIONISMO

PERFECCIONISMO

Ubirajara Godoy Bueno


... o que afeta nossos corações
Não é a exatidão de partes individuais;
Não são uns lábios ou uns olhos
 que beleza chamamos,
Mas a força conjugada
 e o resultado final de tudo

Alexander Pope



Por mais inconcebível que possa parecer, pude entender-lhe o ato horrível, embora não signifique aceitá-lo como um procedimento normal. 
Sempre demonstrou, pelo menos desde que o conheço, um extravagante senso de estética e organização. Um perfeccionista além dos padrões que o termo possa admitir ou sugerir.
Não havia em sua casa um único lugar que escapasse de seus cuidados. Móveis, utensílios, objetos de adorno e de uso pessoal dispunham-se numa ordem tão meticulosa que tais requintes somente poderiam ser atribuídos aos caprichos de uma mente obcecada.  Detalhes ínfimos, que passariam despercebidos aos olhos do mais atento observador, chamavam a sua atenção. Incomodava-se com uma simples rugosidade no tapete ou uma dobra irregular na cortina. Refazia de boa vontade um manuscrito diante de uma única rasura, assim como não relutava em descartar os objetos que lhe apresentassem a mínima imperfeição, ainda que pudessem cumprir suas funções.
Contava com os serviços de três empregados devidamente treinados para manter, sob a sua orientação, a organização da casa.
No decorrer de nossa longa convivência, fui conhecendo suas esquisitices, o que não afetou, em absoluto, a nossa boa amizade. Estimava-o sinceramente.
Fora isso, era um sujeito tranquilo, dócil, alegre, dono de uma cultura admirável, especialmente na área das letras. Ocupava, há muitos anos, um cargo importante na alfândega do porto marítimo. Apesar dos seus trinta e poucos anos de idade, mantinha-se solteiro por opção. Residia apenas em companhia de seus empregados e esta condição parecia ser a mais favorável ao seu estilo de vida incomum.
Certa vez, durante um encontro de amigos, confessou-me ele, num leve torpor da bebida, o terrível incômodo que lhe causava o estrabismo em seu olho esquerdo. Acrescentou o fato dos médicos terem descartado a possibilidade de uma cirurgia corretiva.
Notava-se, realmente, um discreto desvio do seu olho, mas essa pequena anomalia não parecia comprometer a sua visão e longe estava de afetar-lhe a estética.
Procurei tranquilizá-lo de sua tola preocupação, mas interrompeu-me nervosamente:
— Uma pequena, mas perceptível diferença entre dois elementos concebidos originariamente para serem idênticos entre si é intolerável.
— Acredito que o mais crucial seria uma grande diferença  —  contestei.
— Ao contrário retrucou ele. Não sendo possível a igualdade, é preferível a total desigualdade. Esta última é perfeitamente caracterizada pelo contraste ou assimetria, enquanto a semelhança sugere algo mal sucedido de se alcançar a igualdade, com resultados estéticos desastrosos. O quase igual ou a quase normalidade devem ser rejeitados. 
— Não posso concordar com um princípio tão absurdo — talhei severamente. —  O que está me dizendo equivale a afirmar que o melhor  é a falta de audição do que tê-la com uma leve deficiência, ser  mudo a não ter uma boa dicção.
Meu amigo sorriu, como se complacente com minha incompreensão; depois observou num tom incisivo:
— Note que estamos considerando, sobretudo, o aspecto estético e não funcional.
— Admito que suas colocações possam ter fundamentos em alguns casos específicos, mas não seria sensato estendê-las indiscriminadamente para todas as situações — disse-lhe um pouco ríspido, censurando seu juízo analítico.
Mas não me deu resposta. Sentado, com o rosto apoiado nas mãos, silenciou-se acabrunhado.
Tentei distraí-lo com outros assuntos, mas somente após algum tempo foi possível acalmá-lo.

Duas semanas depois viajei ao exterior para tratar de assuntos profissionais, de onde retornei após quatro meses.
A viagem de volta fora cansativa, mas resolvi, no mesmo dia, ao final da tarde, visitar meu amigo perfeccionista. Dirigi-me ao porto onde trabalhava e encontrei-me, antes, com o seu tio, um ex-marinheiro que agora cuidava da segurança dos navios. Trocamos cumprimentos e perguntei-lhe do seu sobrinho. Em reposta, apontou-me com o dedo a plataforma do cais. Lá estava meu amigo, em companhia de dois homens, a examinar uma pilha de caixas. Notei-lhe uma venda no olho esquerdo à moda dos piratas.
— O que lhe aconteceu?  —  indaguei apreensivo, supondo alguma desgraça. 
— Vazou o próprio olho  —  respondeu seu tio com pesar.

* * *

DATA DA PRODUÇÃO:  Fevereiro/2000  — REGISTROS: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais  No  305.044   -   Livro 555 -  Folha 204  -  Data:  24/11/2003;  No 474.325 – Livro 894  -  Folha 134  -  Data: 06/10/2009

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