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REENCONTRO
Ubirajara Godoy Bueno
A desgraça neste mundo é variada
e a miséria multiforme
Poe
O firme propósito de rever um velho amigo que se mudara para o interior, e de quem eu não tivera mais notícias, levou-me a uma busca paciente e alguns dias de viagem antes de localizá-lo num sítio distante. Da pequena casa onde morava sozinho, entre montanhas e bosques, dir-se-ia resguardar seu morador aos olhos do mundo.
Minha visita causou-lhe grande surpresa e foram necessários alguns minutos para que meu amigo pudesse recompor-se de suas emoções. Quanto a mim, não fiquei em situação diferente. Mal podíamos acreditar em nosso reencontro após vinte anos de separação.
— Felizmente achou-me neste fim de mundo — disse-me ele com uma alegria incontida, enquanto abraçava-me calorosamente.
— Segui o seu rastro como um cão perdigueiro! — exclamei, um tanto orgulhoso e sinceramente satisfeito pelo resultado de minha determinação.
Durante todo o resto do dia e parte da noite, permanecemos juntos a recordar algumas passagens de nossas vidas.
Devo admitir que a aparência do meu amigo causou-me certa opressão. Seu rosto revelava não somente as marcas do tempo mas, sobretudo, o que me pareceram sequelas de um grave acidente. Cicatrizes sulcavam-lhe a face e desciam até o pescoço, sugerindo profundos arranhões ocasionados por garras potentes. Um retângulo de couro, preso a uma tira que lhe circundava a cabeça, tapava seu olho esquerdo. Imaginei com um calafrio a horrível deformação que a pequena venda escondia. As cicatrizes repuxavam-lhe um pouco os lábios e, com efeito, sua voz sofrera uma discreta alteração. Marcas semelhantes podiam ser observadas em seus braços e nos dorsos de suas mãos. Os cabelos em desalinho, outrora louros e abundantes, já raleavam e tingiam-se de branco. A barba por fazer acentuava-lhe a rudeza da aparência. Vestia, sobre uma camiseta branca, um macacão de brim surrado e calçava, sem meias, botinas de couro cru. Tinha sido na juventude cuidadoso com suas roupas, um exemplo de vaidade, mas agora exibia uma simplicidade quase desleixada. Custava-me associar sua figura à imagem que eu trazia na lembrança de um jovem elegante de pele rosada e feições plácidas, alegre e inquieto, cuja vivacidade parecia eterna. Somente me havia sido possível identificá-lo com segurança quando, ao bater-lhe a porta, disse-me seu nome. Desgostava-me vê-lo tão diferente. Não podia atinar sobre o que lhe acontecera e fiquei a imaginar os infortúnios que a vida lhe infligira.
Contou-me que havia comprado uma fazenda bastante próspera na época em que suas excursões pelo garimpo renderam-lhe algum dinheiro, mas tinha se desfeito da propriedade e preferido a simplicidade do seu pequeno sítio. Há algum tempo dedicava-se a criação de abelhas com grande entusiasmo. Falou-me efusivamente sobre a arte da apicultura, curiosidades e detalhes que eu jamais poderia imaginar. Tornara-se um especialista no assunto. Dezenas ou centenas de colméias espalhavam-se pelo seu sítio e o ar recendia a mel. Talvez fossem as abelhas suas únicas companhias.
Não me falou, contudo, sobre o acidente que lhe havia mutilado e procurei manter-me discreto sobre este assunto. Á noite, porém, quando conversávamos e bebíamos, à fresca da varanda, acabei tomando conhecimento sobre o que lhe havia ferido o corpo e a alma.
— Pelo que vejo acabou solteiro? — perguntei-lhe ao lembrar-me quando dizia que jamais se casaria.
— É verdade. Mas certa vez cheguei a marcar casamento — respondeu ele um pouco constrangido.
— Então... ?
— Foi na época da fazenda e isso já faz muito tempo — deu de ombros e silenciou-se.
— Pois continue — insisti.
Parecia que relutava em falar sobre o caso e cheguei a arrepender-me de minha insistência. Após uma longa pausa prosseguiu finalmente:
— Havia uma moça chamada Clara, filha do feitor de uma fazenda vizinha. Conheci-a numa festa na cidade e as circunstâncias favoreceram novos encontros e o começo de um namoro. Em cinco ou seis meses ficamos noivos e marcamos nosso casamento. No final de uma tarde, retornávamo-nos da cidade em direção à fazenda, servindo-nos de uma charrete que usávamos frequentemente. Durante o trajeto, uma das rodas do veículo quebrou-se. Desatrelei o animal e seguimos a pé pela estrada de terra que se estendia como um túnel entre as copas das árvores e touceiras de capim. Apesar do caminho ser conhecido, aceleramos os passos a fim de evitarmos percorrê-lo à noite. O cavalo, que eu mantinha seguro a uma corda, seguia-nos logo atrás e notei-lhe uma súbita inquietação. Neste momento, sobressaltou-nos o ronco de uma onça. O cavalo tornou-se incontrolável e, arrancando-me da mão a corda que o prendia, disparou numa fuga alucinada. Clara agarrou-se ao meu braço e começou a chorar. Contava apenas com a faca que eu costumava carregar; uma arma de pouca serventia para uma situação como aquela. Pusemo-nos a correr instintivamente. Corríamos a perder o fôlego, sem que isso nos livrasse do perigo. Enfiada na vegetação à margem da estrada, a fera avançava na mesma velocidade, agitando o capim, estalando galhos e fungando como um touro enfurecido. Acompanhava-nos a cada passo sem se mostrar, mas posso garantir, meu amigo, que era possível sentir-lhe o bafo fedorento. De súbito, a fera ergueu-se da mata e saltou sobre nós com um rugido medonho, mais precisamente em direção à Clara. Uma onça enorme, pouco comum nas redondezas. Provavelmente estava faminta. Interceptei a tempo o seu ataque, atirando-me contra ela de faca em punho, sobraçando-lhe o pescoço como um louco suicida. Um gesto desesperado, mas que livraria Clara do bote fatal. Mesmo presa em meus braços, contorcendo-se e debatendo-se furiosamente, a maldita onça conseguia atacar-me. Num único golpe, retalhou meu rosto e extirpou-me o olho com suas garras afiadas. Um momento horrível que jamais poderei esquecer. Naquele instante, suportei o sofrimento, ignorei todos os riscos e a minha própria vida, buscando unicamente, com as forças que me restavam, manter Clara livre do perigo. Mesmo com uma dor atroz e o olho que me restava encharcado de sangue, permaneci atracado à fera a desferir-lhe seguidos golpes, enquanto suas unhas continuavam a dilacerar-me o corpo. Sua boca escancarada tentava atacar-me a garganta com tal ímpeto que considerei minha morte inevitável. Finalmente, quando me sentia prestes a desfalecer, o animal, ferido mortalmente, desabou sobre o meu corpo. Clara, ilesa, havia conseguido fugir em direção à fazenda e lá chegando pediu ajuda aos trabalhadores. Algum tempo depois, já noite, fui encontrado inconsciente. Levaram-me para uma casa de saúde onde permaneci até recuperar-me dos ferimentos, mas desejei ter morrido quando retirei as bandagens e mirei no espelho meu rosto deformado pelas feridas. Um sentimento de angústia e horror sufocou-me durante muito tempo.
— E Clara? — perguntei, deveras aturdido com a história.
— O casamento não aconteceu. Qual moça se casaria com o monstro que me tornei? — finalizou meu amigo, reabastecendo nossos copos e brindando, mais uma vez, nosso reencontro.
* * *
DATA DA PRODUÇÃO: Janeiro/1999 — REGISTROS: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No 205.836 - Livro 356 - Folha 496 - Data: 21/07/2000; No 474.325 - Livro 894 - Folha 134 - Data: 06/10/2009..
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