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sábado, 7 de maio de 2011

O FANTASMA CAMPESTRE

O FANTASMA CAMPESTRE

Ubirajara Godoy Bueno


  “Onde não há imaginação, não há horror”

                                      Arthur Conan Doyle


          Sentado à escrivaninha, o professor A. Quemedo cuidava das correspondências acumuladas durante a sua ausência. Entre elas, um telegrama da senhora M.  Há aproximadamente duas semanas, a mulher enviara uma carta relatando que o seu velho piano passara a tocar sozinho durante a noite. Acontecimento estranho e inexplicável —  dizia ela, considerando que morava, desde a morte do marido, apenas em companhia de um papagaio, somado ao fato de que a tampa sobre o teclado há muito não se abria devido a ferrugens nas dobradiças. Acreditava que os sons, entoados às horas mortas, era obra de algum fantasma zombeteiro e descartava a possibilidade de qualquer ligação com um dos falecidos a quem o piano pertencera, pois, as notas descompassadas, sem qualquer ritmo, só poderiam ser produzidas por uma entidade sem a mínima noção de música. Finalizava a carta dizendo ser inevitável desfazer-se do piano caso o problema persistisse, ainda que esta solução lhe fosse extremamente dolorosa; o velho instrumento era herança de família. Diante de tão delicada situação, a infeliz senhora solicitava ajuda com a máxima urgência.
         Uma inspeção no interior do piano, realizada pelo professor alguns dias depois, revelou a presença  de  penugens aderidas às cordas do instrumento, mais precisamente, pêlos de rato. Foi sugerida a instalação de uma ratoeira na abertura inferior do móvel. Decorridos seis dias, o presente telegrama notificava o sucesso da intervenção; o problema fora resolvido com a captura do roedor.
         Este caso, semelhante à história curiosa do teto que choramingava, levou o professor a desviar sua atenção para uma boneca de louça sobre a estante de livros; lembrança e prova irrefutável de mais um mistério resolvido. A boneca havia sido encontrada junto aos objetos que entulhavam o sótão de uma velha casa. Apoiada sobre uma ânfora, a boneca pendia de um lado para outro ao ser tocada pelas pombas que habitavam o local. O movimento acionava um mecanismo interno no brinquedo que produzia com perfeição o choro de uma criança. Durante muito tempo, o fato assombrou os moradores da casa, até ser investigado e rapidamente solucionado pelo professor. Um dos seus primeiros trabalhos após ter deixado a cadeira de matemática no magistério do estado para dedicar-se ao novo ofício. Atribuiremos a escolha de tão incomum especialidade simplesmente a um pendor para assuntos de tal natureza, e isso basta. Deixemos de lado as longas especulações, dispensáveis a este relato, sobre os impulsos que norteiam ou definem as preferências humanas. No caso do professor, acrescentemos, apenas, que o seu trabalho era, invariavelmente, conduzido no terreno científico, em conformidade com sua formação exclusivamente materialista. Jamais atribuía qualquer ocorrência, por mais estranha e inexplicável que pudesse parecer, a manifestações sobrenaturais.
         Voltou às correspondências. Apanhou um envelope branco com distintivo azul impresso em relevo. A insígnia lhe era conhecida; pertencia a uma associação espírita. Num artigo publicado há pouco tempo, ele criticara com certa austeridade a crença de seus membros e provavelmente a correspondência era uma resposta às suas colocações, — deduziu o professor, enquanto abria o envelope com um estilete de prata. Estava acostumado aos revides.

         Estendeu a carta sobre a escrivaninha e leu a seguinte mensagem:

Caro Professor A. Quemedo

     Rejubilamo-nos em saber que o caso do Fantasma Campestre foi conduzido e concluído de forma imparcial, sendo admitido por V. Sa tratar-se de uma legítima ocorrência de caráter sobrenatural.

     Seu louvável bom senso em aceitar as evidências no caso em questão nos leva a crer que, doravante, tal postura, diante de situações semelhantes, será uma constante no seu trabalho.

Atenciosamente

A. E.

         O professor enrubesceu. Deveria haver algum engano. O caso fora cuidado e resolvido como tantos outros e estaria louco se tivesse admitido a existência de um fantasma ou algo semelhante.
         Acendeu o cachimbo, afundou-se na poltrona e com os olhos fixos no teto do escritório procurou ressuscitar as lembranças dos detalhes do caso. Que mal entendido poderia ter ocorrido?
         Voltemos, pois, caro leitor, ao início dos acontecimentos e, a exemplo do professor, vamos revisá-los com atenção.
         Dois dias antes de sua viagem para o exterior, o professor resolvera investigar de última hora as aparições de um fantasma numa cidadezinha do interior.  O caso estava sendo tratado com persistência por um desses jornais sensacionalistas e o assunto já ganhava dimensões de um grande acontecimento.
         Após viajar quatro horas de carro, o professor foi ter com o lugar onde se davam as aparições. Uma cidade minúscula com menos de mil habitantes. As casas de construções simples, encardidas pela terra vermelha, espalhavam-se em alguns poucos quarteirões. Era possível divisar toda a cidade num rápido passar de olhos.
         O vigário Marinho, homem de fala e escrita bonita, guardião dos moradores, era o mais indicado para recepcionar o visitante e dar-lhe as devidas informações.
        — É bem ali onde a noite ele aparece. Caminha sem pressa até se embrenhar na floresta e desaparecer das vistas — falou o vigário, apontando para um local da orla verde que circundava a cidade.
        — Como é esse tal fantasma? — indagou o professor, observando empertigado a mata densa carregada pelas sombras da tarde.
         — Parece ser um velho de cabelos brancos, usando roupas comuns. Não é possível distinguir-lhe a fisionomia.
         — O que faz vocês pensarem que se trata de um fantasma?  —  questionou o professor sem tirar os olhos do bosque.
         — Não tem sentido alguém ficar perambulando a horas mortas pela floresta.
         — Um caçador —  sugeriu o professor.
         — Não é um caçador — afirmou o vigário.
        — Um  vagabundo andarilho...  —  insistiu o professor, considerando as causas mais prováveis que pudessem provocar mal-entendidos.
         — O fato se repete da mesma forma e com bastante frequência, o que acabaria ser tornando uma rotina maçante mesmo para um desocupado.
         — Acho que podemos descartar essas possibilidades — concordou finalmente o professor. — Alguma aparição recente?
        — Semana passada alguns curiosos se reuniram durante a noite e resolveram esperar pelo fantasma. Algumas horas depois, viram o espectro vagando pela floresta.
         — De onde estamos seria possível observá-lo?
         — Sem dúvida. Foi exatamente daqui que o mascate e o seu sobrinho viram ...  a assombração, se assim posso dizer. O que pretende fazer?
        — Permanecer  de plantão até o nosso fantasma aparecer — respondeu o professor,  dirrigindo-se ao carro, de onde apanhou uma bolsa contendo, entre outras coisas, lanterna, luneta e, obviamente, cachimbo e tabaco.
         — Espero que a noite seja clara.
         — Vai ser – garantiu o vigário, examinando o céu limpo.
         — Me faz companhia?
         — Infelizmente não tenho mais disposição para os serões — lamentou o vigário. Retirou-se em seguida farfalhando a batina, não sem antes dispersar energicamente um grupo de curiosos que se aproximava do ilustre visitante.
         O professor olhou as áreas circunvizinhas em busca de um posto de observação. Munindo-se de cachimbo e luneta, sentou-se numa rocha de granito.
         À noite, a mata se transformou numa massa cinza gigantesca de onde a brisa morna trazia um cheiro agreste.
         O que o professor notara, até então, foram apenas as corujas mergulhando na floresta à caça de roedores, os vôos dos pirilampos e a sinfonia estridente dos sapos e grilos.
         A cidade, do outro lado, silenciosa e deserta, igualmente não oferecia novidades. Àquelas horas distinguia-lhe somente as luzes amareladas do cruzeiro no alto da igreja, infestadas de mariposas e besouros.
         Finalmente surgiu uma figura de contornos vagos, aparecendo e desaparecendo à medida que caminhava entre as árvores. Com a luneta, o professor focalizou um velho miúdo e frágil, com cabelos brancos espetados para fora do chapéu de palha. O rosto, mesclado de sombras e luz da lua, mostrava-se pouco distinto.
         — Ô dito cujo! — exclamou o professor e, decidido a não perdê-lo de vista, apanhou uma lanterna e entrou na mata.
         Acelerando os passos, procurava diminuir a distância que o separava do suposto fantasma. Em alguns trechos, as copas das árvores mais altas vedavam totalmente a claridade da lua. O professor recorria à lanterna, contudo, mal conseguia iluminar um pequeno círculo no solo. O velho, à sua frente, parecia conhecer perfeitamente o caminho; seguia-o sem dificuldades, apesar da falta de iluminação.
         A perseguição continuou por uma vereda margeada de caniços, abrindo-se alguns metros à frente numa clareira. O velho caminhou em direção a um casebre que se erguia no descampado.
         — Ei você! —  gritou o professor, ofegante pela longa caminhada.
         O velho voltou-se curioso, mas sem qualquer sinal de surpresa. Aparentava ter uns setenta anos. Os olhos pequenos e azuis reforçavam a expressão tranquila dos matutos. Trajes simples: camisa xadrez e calça de brim segura por suspensório; a cabeça branca metida num chapéu de palha esgarçado. Os pés, esparramados e calejados, estavam nus.
         — Sou o professor Quemedo.
        — Cilas Barreiro, ao seu dispor — identificou-se o velho, apanhando uma lamparina de querosene que bruxuleava pendurada na porta da choupana.
         — Parece que suas andanças pela floresta têm assustado o povo da cidade. Acreditam que seja um fantasma.
         — Pelo menos sirvo pra alguma coisa —  falou o velho com um sorriso de poucos dentes.
         — Melhor seria se explicar com o padre.
         — Vosmecê diga pra ele se assossegá.  Fica preocupado por mor de coisa à-toa.
         — Conhece o padre?
         — Tem cabeça dura e coração mole.
        — Se me permite, senhor Cilas, tenho que voltar à cidade — disse o professor, dando por encerrada a conversa, que pela brevidade das respostas do velho, não prometia evoluir de forma mais interessante. Além do mais, o problema estava praticamente resolvido. O fantasma não passava de um caipira.
         O velho assentiu com a cabeça e entrou na choupana.
         O professor tomou o caminho de volta, procurando se orientar pelas luzes do cruzeiro da igreja que brilhavam muito longe como uma constelação no céu negro. Seria fácil alguém se perder naquele lugar.
         Já passavam das onze horas quando alcançou o local de partida. Seguira o velho por uma distância maior do que imaginara. Dirigiu-se até o carro, serviu-se de uma dose de conhaque e voltou ao cachimbo. Na rua não se via vivalma. Aos latidos de um cão somaram-se, aos poucos, o ruído de um automóvel que se aproximava.
         Aquilo sim era um verdadeiro fantasma — pensou o professor, observando um jovem de rosto comprido e sardento, com cabelos eriçados cor de fogo, que estacionava o seu veículo do outro lado da rua. O jovem, muito alto e magro, saiu do carro e, com passos ligeiros, caminhou em sua direção.
         — Professor Quemedo, suponho —  falou o rapaz, estendendo a mão esguia.
         — Exatamente.
      — Sou Ladepoys Junior, o jornalista que está acompanhando o caso do  fantasma campestre. O vigário telefonou de última hora avisando-me da sua presença.
         — Sorte ter me encontrado, já estava de saída.
         — Quando pretende continuar as investigações? —  perguntou o jovem desapontado.
         — O trabalho está concluído — respondeu o professor empinando o nariz e tirando do cachimbo uma longa baforada.
         — Concluído?
         — Uma das questões mais simples com que já me deparei. Na verdade, o tal fantasma é um matuto chamado Cilas Barreiro, provavelmente conhecido pela maioria dos moradores da cidade.
         As sardas do jornalista tornaram-se mais vermelhas, os cabelos mais eriçados e os olhos cintilaram deslumbrando a manchete do próximo jornal.
         — E como soube disso? — perguntou o rapaz, guarnecendo-se de papel e caneta.
         — Segui o nosso fantasma até o seu casebre, numa clareira a dois ou três quilômetros na direção norte da floresta. Conversamos alguns minutos e cá estou são e salvo, apenas um pouco cansado da caminhada.
         — Esplêndido. Nada como o serviço de um especialista.
         — Escreva sobre a conclusão do caso e mande-me um exemplar do jornal – solicitou o professor, entregando-lhe um cartão com o seu endereço.
         — Assim será feito – prometeu o jovem com visível euforia.
         — Não deixe de informar ao padre — lembrou o professor, entrando no carro e despedindo-se em seguida.
         No dia seguinte, com mais um caso resolvido, o professor partiu em viagem para o exterior, de onde retornou após seis dias.
         Assim terminamos a retrospectiva deste caso. Portanto, astuto leitor, a que atribuir o engano?
         “A notícia no jornal” – intuiu o professor, batendo a mão sobre a escrivaninha. Afinal, pensando bem, Ladepoys Junior não inspirava muita eficiência e poderia ter distorcido as informações. Imediatamente vasculhou uma cesta onde a empregada costumava guardar os jornais e revistas. Lá estava o exemplar procurado num envelope datado pelo correio dois dias após a investigação do caso. A matéria do jovem jornalista era assunto da primeira página.
         O professor leu a notícia com a haste do cachimbo trincada nos dentes, e desta vamos ao trecho elucidativo:

ESCLARECIDO O CASO DO FANTASMA CAMPESTRE

  ... e o especialista, professor A. Quemedo, afirmou ter mantido breve conversação com o fantasma, após segui-lo pela floresta onde ocorrem os fenômenos. A surpreendente aparição identificou-se ao professor como sendo Cilas Barreiro. Segundo informações do padre Marinho, o qual se recorda com pesar do velho ermitão,  Cilas  Barreiro  residia num sítio pouco afastado da cidade e faleceu há aproximadamente quatro  anos. Foi encontrado morto em sua cabana (causa desconhecida), por um grupo de caçadores  que na ocasião...

         A situação exigia mais que um tabaco forte e o professor recorreu, sem restrições, à garrafa de conhaque. 

*   *   *

DATA DA PRODUÇÃO:  Julho/1994  — PUBLICAÇÃO:  Histórias Heterogêneas – 1995 —  REGISTROS: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No  95.185  -  Livro 133  -  Folha 119  -  Data:  31/01/1995;  No  205.836  -  Livro 356  -  Folha  496  -  Data:  21/07/2000.

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