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sábado, 7 de maio de 2011

A CONTENDA

A CONTENDA

Ubirajara Godoy Bueno


                  ... consideramos que nossa
            virtude máxima é certa astúcia
            prática, que, na verdade, nos é
  extremamente indispensável
                                                     (...)
                          Franz Kafka, em Josefina a Cantora      


Zadoque, o boticário, conquistara, ao longo dos anos, uma situação próspera em seus negócios. Angariara uma pequena fortuna que se dividia em alguns imóveis e outros bens.
         Tal sucesso não se devia unicamente à técnica da manipulação, profissão, aliás, pouco rendosa, mas, sobretudo, a uma extraordinária disposição para o trabalho. Costumavam atribuir a sua vitalidade aos elixires preparados em seu laboratório, e se assim não era, a propaganda lhe valeu vendas formidáveis.
         Além da reputação de bom profissional, conquistara também o reconhecimento de cidadão exemplar. Homem sério e cônscio de postura irrepreensível e tão sólidas considerações não foram abaladas nem mesmo quando, no enlevo de uma paixão repentina e extravagante, desposara a jovem e bela Caterina.
         Os acontecimentos que seguiram a este enlace mostraram-se igualmente extravagantes.

*

        Beba o vinho — disse Zadoque, com um revólver apontado para a cabeça da mulher.
         Caterina, inclinando-se na cadeira, estendeu a mão trêmula em direção aos dois cálices sobre a mesa.
         Presenciara quando o marido servira a bebida, entornando numa das porções de vinho o conteúdo de um frasco de veneno para, em seguida, alternar rapidamente e várias vezes as posições dos cálices. Caterina deveria escolher qual dose tomar: uma inócua, a outra mortal. A situação sugeria o velho jogo das cascas de nozes que Zadoque costumava exibir com grande habilidade.
         Havia a possibilidade de servir-se do vinho inofensivo, contudo sabia que se tal acontecesse ele acabaria por matá-la  de outra forma. Acusava-a de ter tentado envenená-lo. Não fazia muito tempo, Zadoque havia encontrado acônito misturado a uma nova porção de ervas para o preparo de seu chá habitual. Ao identificar o vegetal venenoso, antes de fazer uso da infusão, admitiu tê-lo apanhado por engano quando colhia no campo folhas e raízes. Porém, agora, mostrava-se convicto de ter sido a mulher quem adicionara intencionalmente o acônito aos ingredientes e Caterina compreendera que o passeio naquela tarde à casa de campo fora cuidadosamente planejado para submetê-la àquele jogo sádico.  
— Beba — repetiu Zadoque, comprimindo a fronte pálida da mulher com o cano do revólver.
         Por momentos pensou recusar o vinho, mas a idéia da arma disparar lhe era insuportável. Finalmente escolheu um dos cálices.  Levou a bebida à boca e procurou sentir algum odor que denunciasse a presença da droga.
         — O veneno é inodoro e insípido — observou Zadoque ao perceber a intenção da mulher.
         O gatilho moveu-se com um rangido.
         Num gesto súbito e quase involuntário, sorveu, em um só fôlego, todo o vinho. Aguardou, angustiada, os efeitos do veneno; os primeiros espasmos, as dores lancinantes, a horrível asfixia e a paralisia dos músculos vitais. Em alguns casos ocorriam vômitos, dormências e frio intenso. Talvez o veneno utilizado pelo marido fosse forte o bastante para promover uma morte rápida e lhe poupar tais sofrimentos, pensou Caterina, com o suor a banhar seu rosto lívido e desfigurado pela exaustão.
         Olhou para Zadoque, que agora se punha a andar em círculos sem deixar de observá-la. Parecia-lhe que a espreitavam, com o mesmo interesse do marido, os olhos fixos e vítreos das cabeças ressequidas dos muitos troféus de caça suspensos nas paredes.
         Ao cabo de poucos minutos ocorreu-lhe uma esperança de fuga. Considerou a possibilidade de o veneno encontrar-se no outro cálice e, se assim fosse, poderia simular sua morte e escapulir na primeira oportunidade antes que Zadoque percebesse o embuste.
         Confiava em sua capacidade de representar e estava disposta à encenação a que se propusera.  
         Agachou-se, levando as mãos à garganta como se o ar lhe faltasse.
         — Estou morrendo  — gritou, deitando-se no chão.
         Desconhecia o tipo de veneno escolhido pelo marido, o que não lhe permitia precisar as reações características, mas procuraria ser convincente na sua representação.
         Zadoque sentou-se na cadeira há pouco ocupada por Caterina e, enquanto observava satisfeito a agonia da mulher, passou a beber o vinho do segundo cálice.  Ao final de pouco tempo, foi a sua vez de cair e estremecer-se em convulsões.
         Caterina não conteve o riso. Ah! Feliz ironia que lhe compensava os momentos pelos quais passara. Levantou-se e arrumou os cabelos na tiara dourada.
         — Uma representação admirável — balbuciou Zadoque  — , mas sua esperteza nem sempre é surpreendente;  foi  tolice ter adicionado acônito às ervas de minhas infusões — balbuciou Zadoque, colocando-se de joelhos.
         — Descobriu o acônito com a quebra acidental do frasco, o que não atesta minha tolice, ou lhe dá algum mérito. Mas isso já não tem mais importância — respondeu a mulher indiferente, retocando o batom no espelho da sala.
         — Ainda que eu tivesse feito uso do chá, poderia ter me livrado da ação do veneno com o vomitório que conservo na mesa de cabeceira.
         — Substituí o vomitório por água  —   confessou  Caterina  com um brilho nos olhos que  sobrepujava aos dos espectadores empalhados.
         — As circunstâncias de minha morte seriam investigadas  —  lembrou Zadoque, com voz entrecortada
       — Não é impossível, mesmo a um boticário experiente, enganar-se com algumas espécies de ervas e raízes. Não faz muito tempo alguns soldados em exercício de sobrevivência confundiram raízes de acônito com nabo – contrapôs Caterina.  Depois, olhando a garrafa de vinho sobre a mesa, continuou:
         — Quanto a hoje, terei prazer em dizer exatamente o que aconteceu. Não será difícil convencer a polícia de que o motivo foi um marido transtornado pelo ciume e suas suspeitas infundadas de infidelidade. Parece-me bem apropriado a este incidente, do qual não vou me lamentar.   
         Ainda de joelhos, o rosto contraído, Zadoque comprimia o estômago com as mãos, como se o veneno lhe corroesse as entranhas.
          — Uma viúva jovem e rica pode ser uma condição fortuita ou planejada — finalizou a mulher, dando-lhe as costas e caminhando impávida em direção à porta de saída, ao mesmo tempo em que Zadoque debruçava o corpo, como se descansasse de uma tarefa penosa. A respiração ofegante tornou-se inaudível e no semblante, há pouco distorcido, notava-se, agora, uma nesga de júbilo. Com as mãos espalmadas, bateu vigorosamente no assoalho.  Em resposta, sons de passos vieram do corredor que se estendia até o fundo da casa.   
          — Declarações interessantes — anunciou um homem gordo de fala macia que saíra de um quarto contíguo e dirigia-se à sala, acompanhado de um policial uniformizado.
         — Creio que a espera tenha lhes cansado — disse Zadoque aos dois homens, enquanto colocava-se de pé e com a palma da mão sacudia a poeira da roupa.
         — Em minha profissão, há coisas mais cansativas do que algumas horas de vigília no interior de um quarto  —  respondeu o gordo que se escondera no cômodo minutos antes da chegada do casal.
         Zadoque voltou-se para Caterina, transtornada pela surpresa e cólera. O corpo paralisado apoiava-se na ombreira da porta.
         — Eu sabia sobre o vomitório, o que me deu a certeza de que  você havia colocado o  acônito em minhas ervas. Decidi responsabilizar-me pelo incidente até ser possível extrair-lhe a confissão. Acreditei que falaria do seu plano sórdido, conquanto fosse convenientemente instigada para isso e  pudesse  preservar sua impunidade. Confidências a um moribundo não lhe traria qualquer risco. Poderia vangloriar-se de seus feitos e gabar-se de sua esperteza sem se comprometer. Cuidei de planejar as situações que acabariam por levá-la a uma confissão; um artifício que a psicologia chama de comportamento induzido. A encenação, da qual recorrera para tentar fugir, e suas declarações eram previsíveis diante das circunstâncias. A propósito, sua interpretação estava excelente.
— Você também não se saiu mal — retrucou Caterina, com o mesmo tom de ironia.
— Surpreendente! — exclamou o policial de fala macia, cuja preocupação no momento era reacender o seu charuto.
         Zadoque dirigiu a todos um sorriso de triunfo, saboreando o sucesso do plano cuidadosamente engendrado, com o qual conseguira antever os resultados com admirável precisão. Em seguida, recolheu o revólver sem munição e o frasco de veneno falso.  Serviu-se do resto do vinho da garrafa e, com um suspiro, deixou-se cair numa poltrona da sala enquanto os policiais retiravam-se da casa enlaçando nos braços a bela Caterina.
       
*  *  *

DATA DA PRODUÇÃO: Março/1987  —  PUBLICAÇÃO: Histórias Heterogêneas 1995. —   REGISTROS: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No 86.840  -  Livro 116  -  Folha 003  -  Data: 09/12/1993;  No  205.836   -   Livro 356  -  Folha 496  -  Data: 21/07/2000.

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