O VISITANTE
Ubirajara Godoy Bueno
Ao voltar para casa, o professor Artur Halas deparou-se com um homem em sua sala.
Teria dado meia volta e se retirado imediatamente diante da suspeita de uma invasão hostil, mas tal coisa não lhe ocorreu. Embora estivessem se tornando frequentes os assaltos às residências, o seu inesperado visitante, um senhor de aspecto grave, pareceu-lhe inofensivo e o motivo de sua visita certamente seria relevante. Deduziu que a empregada havia lhe autorizado a entrar mediante a devida identificação e justificativa.
Vestido com um terno preto e chapéu da mesma cor, o homem sentava-se numa poltrona junto à janela a folhear despreocupadamente um jornal do dia anterior. Artur procurou associar sua figura a algum parente ou amigo que há muito não via, mas não lhe veio qualquer lembrança. Estava certo de não conhecê-lo.
O homem levantou-se e retirou polidamente o chapéu ao se dar conta da presença de Artur. Os cabelos de azeviche assentavam-se impecavelmente para trás. O movimento deixou exalar um discreto perfume de cravos. Era alto e magro, conquanto os ombros fossem largos. Aparentava não ter mais que cinquenta anos de idade. Artur pôde observar-lhe melhor o rosto pálido e as expressões calmas de um monge. Os olhos azuis eram encimados por grossas sobrancelhas. Um bigode fino, de pontas curvas, delineava-se como um traço a nanquim.
— Boa noite senhor Artur Halas. Peço-lhe desculpa pela visita inesperada, mas o assunto que tenho a tratar é da máxima urgência.
— Acho que não nos conhecemos — disse Artur, convidando-o a sentar-se novamente, enquanto ocupava uma poltrona vizinha.
— Certamente não.
— Como conseguiu entrar? A porta estava trancada, as janelas possuem grades e acabo de me lembrar que a empregada está de folga.
— Uma das minhas especialidades — respondeu o visitante, piscando um olho.
— Você é um policial e deve ter usado uma chave mestra! — exclamou Artur, estalando os dedos com ar de troça. Desconfiava tratar-se de alguma brincadeira. — Mas qual o motivo...?
— Não me dei a este trabalho senhor Halas, e não sou policial — interveio o homem.
— Então... ?
— Eu sou a morte — apresentou-se o visitante, curvando-se com mesuras.
— A morte ?
— Perdoe-me. Não quero parecer pretensioso. Na verdade, não detenho o poder de decisão sobre a expiração da vida, cuido apenas para que o processo transcorra dentro da normalidade. Faço parte de uma legião onde todos estão habilitados para esta incumbência.
— A morte!? — repetiu Artur, tentando imaginar qual de seus amigos teria lhe preparado a pilhéria. Tinha que admitir que fora cuidadosamente elaborada.
— Apenas um título figurado, por falta de um termo melhor para o entendimento dos homens – esclareceu o visitante, levantando-se e espiando pela janela o movimento da rua.
— E pretende levar minha alma? — perguntou Artur, convencido de que se tratava de uma brincadeira e disposto a levá-la adiante.
— No momento não. Apenas comunicá-lo oficialmente que morrerá impreterivelmente no próximo dia vinte e sete. Sendo assim, é muito importante que seus estudos sobre as reações químicas seletivas sejam concluídos e divulgados. O que é hoje uma simples curiosidade em pouco tempo poderá ser a base para uma das principais pesquisas no campo da medicina. Um grande benefício para a humanidade.
— Sinto-me deveras enaltecido, mas acho que preciso de pelo menos mais trinta anos para concluir meus estudos — voltou Artur num tom de zombaria.
— Não mais que vinte dias. O que foi determinado não pode ser alterado — replicou o visitante, mantendo a seriedade.
— Acredito que não seja comum sermos informados sobre a data de nossa morte.
— Apenas em casos excepcionais. Conforme já lhe disse, nossa função resume-se em auxiliar no processo que costumamos chamar de transmutação.
— Posso saber de que forma vou morrer?
— Não vejo nenhum inconveniente. Um momento, senhor Halas.
O homem retirou do bolso interno do paletó um caderno de capa desgastada pelo uso e pôs-se a consultá-lo, correndo o indicador por uma série de apontamentos.
Artur mal podia acreditar que aquele homem pudesse realmente achar que estava sendo convincente com uma história tão absurda.
— Cá está! — disse ele — Artur Halas, solteiro, 35 anos, professor de química. Vejam só! Atropelamento. Um tipo de acidente corriqueiro nos dias de hoje.
— Atropelamento! Poderiam ter me arrumado coisa melhor — observou Artur, pensando no mau gosto dos amigos.
— Não deve se preocupar. A transmutação será praticamente indolor. Ao contrário do que muitos imaginam, a dor física nem sempre corresponde em intensidade à magnitude da tragédia. Posso garantir que a morte advinda da queda de uma escada, por exemplo, pode ser mais dolorosa em relação àquela onde a vítima se atirou do alto de um edifício ou foi esmagada por um rolo compressor.
— Uma observação bastante confortadora, mas de qualquer modo, prefiro morrer de velhice.
— Certamente a transmutação natural é preferível a outras formas de morte.
— Uma vez ciente do dia e da causa de minha futura morte, posso perfeitamente evitá-la permanecendo em segurança na minha casa — observou Artur, enfatizando a ingenuidade com que o visitante conduzia aquela suposta balela.
— Posso lhe assegurar que isso não será possível — respondeu o outro dirigindo-se à porta de saída após consultar um relógio minúsculo que retirou do bolso do paletó.
— Sempre imaginei a morte com capuz negro e alfanje nas mãos — comentou Artur, examinando as vestes elegantes do visitante.
— Apenas uma crença antiga. Ouvi o mesmo do conde Antonielle.
— Conde Antonielle?
— Perdoe-me, estou falando de coisas que se passaram há muitos anos. Isso foi antes de... 1900, em Veneza, na Itália.
— Não aparenta tanta idade.
— Já ultrapassei os seiscentos anos, há mais de quatrocentos na função — revelou orgulhosamente o visitante, alisando o bigode com os dedos magros.
— Inacreditável — exclamou Artur, referindo-se, na verdade, à capacidade de representar do visitante. Seus amigos tinham contratado um verdadeiro ator.
— Tenho de partir imediatamente — anunciou o homem, consultando novamente o relógio. — Em alguns minutos, cuidarei do falecimento do senhor César Baltazar. Um pintor magnífico que conseguiu resgatar a genialidade dos mestres da renascença. Felizmente será uma transmutação tranquila.
O visitante recolocou cuidadosamente o chapéu e, antes de partir, reforçou a recomendação:
— Não se esqueça de concluir o seu trabalho — depois, baixando a voz e curvando-se para Artur Halas, completou num tom de confidência:
— Há interesses do outro lado para que isso aconteça.
Tão logo a visita se retirou, Artur afundou-se na poltrona e sorriu da pilhéria. Um pouco exagerada, mas original. Provavelmente haviam conseguido uma cópia da chave de sua casa. Se a turma do quarto ano estivesse envolvida na brincadeira, tudo era possível. Não fazia muito tempo os referidos alunos ocuparam-se durante toda uma noite em fechar com tijolos e argamassa a porta da garagem de um professor enquanto a vítima viajava com a família — lembrou Artur.
No momento, o melhor seria um banho quente e um macarrão instantâneo.
Alguns dias depois, nenhum dos seus alunos tinha, até então, dado mostras de serem os autores da brincadeira, inclusive os endiabrados do quarto ano. Não assumir uma encenação daquela grandeza seria o mesmo que não assinar uma obra de arte. Talvez estivessem observando-o discretamente, esperando uma mudança no seu comportamento, mas Artur não lhes daria este prazer. Manteve uma conduta normal, antes, exacerbou sinais de tranquilidade e quando lhe perguntaram sobre suas experiências com as reações seletivas respondeu que somente voltaria a se ocupar com elas no próximo ano.
Mas verdade seja dita, não pôde evitar uma sensação de desconforto ao ler no jornal a manchete sobre o falecimento do pintor César Baltazar, que ocorrera algumas horas depois da excêntrica visita. Mas acabou rindo da sua preocupação. Provavelmente o pintor se encontrava doente há algum tempo, e sendo uma pessoa conhecida, a notícia de sua enfermidade saiu nos jornais. Os autores da brincadeira apenas tiraram proveito da situação e acertaram em cheio com a data de sua morte — concluiu com ares Sherlockiano.
Voltou ao jornal e leu a notícia. O último parágrafo informava: o pintor gozava de boa saúde e teve morte súbita.
Sacudiu-lhe um tremor.
— Bobagem ! Bobagem ! — disse para si mesmo, fechando o jornal. Embora não conseguisse atinar sobre o fato, deveria existir uma explicação lógica. Estava certo disso (ou quase).
Bobagem também seria adiar propositalmente o término de seus experimentos químicos devido a uma simples brincadeira de alunos — ponderou o professor. Tratava-se de um estudo interessante e merecia atenção. Assim, bastaram alguns dias para voltar às experiências e concluí-las de vez. Os resultados foram divulgados numa revista especializada.
No dia previsto para a sua morte, um belo sábado ensolarado, decidiu permanecer em casa. Considerou essa sua decisão como uma simples cautela diante da possibilidade de expor-se, de forma voluntária e abusiva, às situações de riscos unicamente para enfatizar sua descrença a tão absurda previsão. Esse interessante e oportuno preceito sobre o comportamento humano deixou-o mais à vontade com a sua decisão. Além do mais, e talvez só isso bastasse, era o seu dia de folga e estava precisando de um bom descanso. Viu televisão e entregou-se algumas horas à leitura.
Curioso que fosse sábado; normalmente não lecionava nos finais de semana — cismou o professor. Ocorreu-lhe que a maior prova do sucesso do trote que lhe aplicaram seria levá-lo a faltar às aulas no dia marcado pelo visitante, no entanto.... Tudo havia sido elaborado e encenado impecavelmente, exceto por este detalhe. Certamente equivocaram-se com a data — deduziu Artur Halas, espreguiçando-se na poltrona.
Fechou um livro de Kafka e olhou para o relógio na parede da sala: meia noite e quatro minutos. Correu a mão sobre a mesinha ao lado e apanhou a carteira vazia de cigarros. Talvez o bar da esquina ainda estivesse aberto e não lhe custaria nada uma caminhada até lá para reabastecer-se de tabaco. Colocou os chinelos e saiu.
Enquanto seguia pela rua tranquila, lembrou-se mais uma vez da pilhéria. Levantou o pulso e consultou o relógio num gesto impulsivo: meia noite e vinte minutos. Já se passara o dia previsto para a sua morte e o mesmo transcorrera normalmente. Sorriu. Uma pontinha de vergonha corou-lhe a face ao lembrar-se da morte do pintor. Admitia que o fato mexera com seus nervos durante algum tempo e agora se recriminava por isso.
Avistou o movimento no bar e acelerou um pouco os passos, mas deteve-se ao cruzar com um dos seus alunos.
— Amanhã vamos ter alguém dormindo no futebol — brincou o professor, lembrando-se dos jogos escolares dominicais.
— Qual nada, pretendo estar na cama antes da meia noite — respondeu-lhe o estudante com bom humor, sem interromper os passos ligeiros.
— Pois então está atrasado, já é quase meia noite e meia — disse-lhe o professor apontando para o pulso.
— Trate de acertar o seu relógio, há pouco terminou o horário de verão — observou o rapaz.
As pernas vacilaram. A informação tivera o efeito de um golpe em sua cabeça desferido por um pugilista. Sentiu-se desnorteado, covardemente ludibriado.
Mas por que deveria se sentir assim? Não havia razão para isso. Procurou recompor os pensamentos e firmar-se nos passos. Não conseguiu recuperar-se a tempo de perceber o caminhão que, há pouco estacionado a meio fio, agora descia a rua com o freio quebrado, invadindo a calçada como um rinoceronte enfurecido. Tampouco conseguiu desviar-se do choque fatal.
* * *
DATA DA PRODUÇÃO: Setembro/1997 — REGISTRO: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No 205.836 - Livro 356 - Folha 496 - Data: 21/07/2000.
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