Ascensão e queda de um artista
Ubirajara Godoy Bueno
Ao amigo Aristides Theodoro, escritor, jornalista e crítico
literário, criador da fictícia cidade de Curiapeba.
Ninguém atinava como Dorival tinha aventado aquela ideia. Decerto não era coisa de sua cabeça. Suspeitava-se que algum viajante da capital havia dado-lhe a conhecer aquela prática. Mais do que trabalhar, vadiava pela cidade e não seria difícil ter lhe caído aos ouvidos tal informação. Na pequena Curiapeba, era algo inédito.
Arte ou maluquice, era curioso de se ver. De pé, olhos fechados, sobre um banco da praça que lhe servia de pedestal, Dorival mantinha-se completamente imóvel durante horas. O corpo pintado de branco, incluindo cabelo e barba, metido num camisolão da mesma cor, afigurava-se a uma estátua de gesso, o que certamente era o seu propósito.
Observadores mais atentos buscavam surpreender-lhe em algum movimento, mas retiravam-se frustrados após uma longa espera.
Somente ao fim de três ou quatro horas, Dorival abria os olhos, quebrando de súbito a monocromia. Lentamente, saia do seu estado de letargia e recolhia as poucas moedas depositadas aos seus pés; parco pagamento para sua exibição. Mas isso não lhe aborrecia, gostava do seu papel de estátua viva, ter o controle da mente e do corpo. Ficar ali parado era mais descanso e prazer do que labor. Pegara gosto pela coisa.
O que veio a lhe dar maior popularidade e prestígio foi ter se apresentado, a convite do prefeito, na inauguração do novo prédio da prefeitura. Exibir-se em tão importante festividade careceu de melhorias condizentes com a ocasião. A tinta branca, para a pintura do corpo, fora substituída por purpurina dourada. Uma nova túnica, caprichosamente drapeada, e uma coroa de louros compuseram o luxuoso figurino. O pedestal, coberto de veludo e guarnecido de franjas, era para nenhuma estátua botar defeito. Tudo custeado, naturalmente, pela verba do município. E, na noite do solene acontecimento, lá estava Dorival no centro da sala principal para distração dos convivas. Empertigado, imóvel como uma rocha, vaidoso em sua nova roupagem, que resplandecia sob as luzes dos holofotes, a custo continha sorrisos de contentamento quando ouvia elogios sobre o seu admirável desempenho. A noite lhe rendeu um pequeno cachê e a degustação, ao final da festa, de algumas iguarias nunca dantes provadas. Foi notícia no periódico e na rádio local.
Tornara-se uma sumidade. Foi reconhecido como legítimo artista e um honorável cidadão. Não demorou em que viessem lhe assistir moradores de cidades próximas ou mesmo distantes.
A pedido do padre, passou a se apresentar no coreto da praça, protegido do sol e da chuva. Nem mesmo a banda dominical lhe tirou o posto conquistado.
Incentivou-se a criar novas posturas e um traje exclusivo para cada representação. Os donativos aumentaram e não lhe faltavam convites para festas de toda natureza. Sobre um andor, fora carregado na procissão, fazendo as vezes da imagem de São Roque, padroeiro da cidade.
— Nada como um santo em tamanho natural e até mesmo a barba veio a calhar — disse o padre, contemplando Dorival com olhos enternecidos, comparando-o com a minúscula e pouco vistosa imagem de barro que, desta feita, não deixara a igreja para o seu passeio anual.
Mas a tragédia visitou Curiapeba. Certa tarde, viram Dorival estirado no piso do coreto. Acudiram ligeiro, pois com certeza não se tratava de uma nova encenação. O corpo teso e gelado feito pedra indicava o fatídico acontecimento: Dorival estava morto.
— Sofreu um colapso – diagnosticou o médico.
A notícia correu como fogo em rastilho. Curiapeba havia perdido o seu artista.
Em reconhecimento aos serviços prestados à cidade pelo falecido em sua curta existência de artista, o velório teve lugar em frente ao altar da igreja com toda a pompa que a ocasião merecia. Havia gente de várias localidades e a cada instante aumentava o número de presentes, cada qual disputando o melhor espaço em derredor do defunto.
O prefeito compareceu acompanhado de outras autoridades.
“Morto em seu caixão é como se ainda pudéssemos vê-lo no exercício de sua arte: imóvel e sereno. É assim que devemos guardar em nossas lembranças o nosso querido Dorival.”
Assim foi o rápido pronunciamento do prefeito, dito em voz grave e pesarosa. Embora de gosto duvidoso, provocou comoção e alguns renderam-se às lágrimas.
Mal o prefeito deixara a cerimônia com sua comitiva, pois urgia cuidar de outros compromissos, o sacristão lhe alcançou esbaforido e com os olhos esgazeados anunciava:
— Dorival está vivo, sentado no caixão.
O prefeito envergou os sobrolhos, rodopiou nos pés e voltou pra junto do morto, encontrando Dorival, já de pé, ao lado do féretro, mais atarantado que os presentes.
— Se mexer justo agora, senhor Dorival, com todos lhe assistindo pela última vez. Quando é mais fácil ficar quietinho, ataca-lhe o bicho-carpinteiro. Mas que papelão! ¾ disse o prefeito, com as mãos na cintura e tamborilando com a ponta do pé para maior ênfase à repreensão.
Após o sermão, retirou-se de vez, pisando duro, com o rosto vermelho, vexado e inconformado pelo acontecido.
— Certamente um caso de catalepsia - declarou o médico coçando a calva. A explicação não serviu para o devido entendimento e só fez aumentar o alvoroço. O delegado ficou de sobreaviso, pois o termo lhe sugeria algum delito grave.
O padre, por seu turno, alteando a voz, pedia desculpas pela cerimônia encerrada de forma repentina depois de tantos gastos e preparativos.
Há noticias de Dorival ter se mudado de cidade a fim de continuar mostrando a sua arte, visto que em Curiapeba perdera a credibilidade. “Se o homem se mexe morto o que fará vivo” - era o comentário geral.
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