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sábado, 7 de maio de 2011

APRECIAÇÃO


APRECIAÇÃO

Ubirajara Godoy Bueno



            Um assassinato, consumado compulsivamente, reveste-se apenas da violência vulgar. Ainda que sobeja de cuidados, não passará igualmente de um crime ordinário quando o resultado final consistir no único fator preponderante. Contraposto, o processo que ora descrevo mostrar-se-á, acredito, invulgar e interessante em todo o seu curso.
Minha simplória esposa, notória quando em vida somente pela sua impertinência, correspondeu perfeitamente, desta feita, aos meus propósitos.  
         Dentre os muitos recursos disponíveis, optei seguramente pelo veneno, a despeito da concepção atual julgá-lo arcaico. No momento  seria inoportuno  enaltecê-lo com relatos a respeito da sua eficácia no decorrer de séculos; limito-me a observar que a escolha cuidadosa do veneno e sua perfeita aplicação levam, invariavelmente, ao fim desejado de forma impecável.
Tomou-me algumas horas da madrugada a adição de pequenas porções de veneno nos invólucros de chá inglês. Como de costume, a infusão seria preparada e consumida pontualmente às sete horas da manhã pela minha sistemática esposa.
         Com efeito, despertei além do horário habitual.
         Tomei as escadas devagar, extremamente devagar, até o pavimento inferior. Em circunstâncias normais seria inconcebível manter tamanha lentidão. A insipidez da observação abrupta fora devidamente evitada e a expectativa garantida em seu nível máximo. A cada degrau, detinha-me a perscrutar demoradamente uma parte do cômodo lá embaixo. Alcancei a sala no final das escadas e com a mesma lentidão prossegui em direção ao corredor. Atrás da porta entreaberta da cozinha, divisei uma pequena amostra do corpo estirado no chão: o braço imóvel e lívido da falecida. Um momento de vitória e júbilo. Avancei alguns poucos passos e a cabeça despontou com o rosto perfeitamente visível, retorcido pelo torpor da morte. O cadáver despertaria, naqueles desprovidos do senso de análise, apenas aversão ou reles curiosidade. Para um bom observador, no entanto, o material poderia oferecer uma infinidade de detalhes e suposições interessantes. Os cabelos em desalinho e emaranhados, por exemplo, revelavam os movimentos convulsivos que precederam à morte. A mesma desordem era observada nas vestes da defunta. A face direita do rosto colava-se no piso de granito.  A boca escancarada parecia reter um grito que a qualquer momento retumbaria no silêncio da casa. Um filete de saliva seca contornava os lábios azulados e escorria ao longo do pescoço. Os dentes aparentavam uma brancura incomum. Os olhos cavos, abertos e congestionados, estavam voltados para o armário suspenso na parede, onde se encontrava a caixa de chá adulterado. Teria a vítima se dado conta do ardil nos últimos instantes de vida? Que pensamentos lhe ocorreram enquanto o raciocínio embotava-se pela ação do veneno? Embora sejam perguntas para as quais não temos respostas, as conjecturas oferecem um excelente exercício para a imaginação.
         Durante horas permaneci contemplando a cabeça da morta antes de atentar para o resto do corpo, o qual não se mostrou tão interessante.
         Somente à noite ocupei-me em ocultar o cadáver, enterrando-o no porão da casa, após colocá-lo num armário em desuso, semelhante no tamanho e forma a um féretro comum. O sepultamento transcorreu normalmente, obedecendo, na medida do possível, a certos critérios de organização.

         No final de uma semana, ainda excitavam-me, sobremaneira, os últimos acontecimentos. Contudo, garanto não ter me escapado publicamente, em atos ou palavras, qualquer indício de minha exaltação. Foi com absoluta segurança e tranquilidade que justifiquei a ausência da falecida. Aos vizinhos e amigos, disse que estava a visitar parentes distantes, e a estes últimos, quase inexistentes, não careceu explicações. Assim o assunto estava resolvido por tempo indeterminado.
         Poderia-se considerar o processo concluído e os resultados satisfatórios não fosse a sabedoria menos ordinária, presente nos escaninhos da alma, e que às vezes se insinua e nos instiga a imaginação. Assim me parece ser, pois, ao deitar-me bastante cedo, após uma tarde de vários e exaustivos compromissos, e já quase dormindo, ocorreu-me de súbito a possibilidade de uma extraordinária experiência. Refiro-me às mutações após a morte e apreciá-las minuciosamente seria algo formidável.
         Arrebatado pela curiosidade, desci imediatamente ao porão e, esquecendo-me da falta de iluminação no local, tive de voltar em busca de algumas velas. Uma porta bastante estreita e discreta em uma das paredes da sala, precedida imediatamente por uma escada íngreme, consistia na única passagem para o subsolo. Atravessá-la com o corpo da morta uma semana antes havia dado-me um bocado de trabalho. O porão, com aproximadamente dois metros de altura, correspondia em extensão somente a um terço da casa, formado por um desnível do terreno. Uma pequena janela circular, vazada para o quintal, promovia a única ventilação. O chão era desprovido de pavimento e, com exceção de alguns entulhos, restos do que fora uma adega, o lugar encontrava-se desocupado. Bastariam as chamas de três ou quatro velas para iluminar razoavelmente todo o local. No entanto, utilizei uma dúzia delas, garantindo assim  a  perfeita  observação do material a ser analisado.
         Desenterrar o caixão, a poucos centímetros sob o solo, não exigiu grandes esforços.
         Mal retirei a tampa e um cheiro forte de carne putrefata exalou do interior do caixão. Tal circunstância pode sugerir aos mais reservados algo incômodo ou mesmo intolerável. Mas na verdade, numa avaliação puramente técnica, desvinculada de certos preconceitos, podemos considerar o odor, independente de sua natureza, quando intrínseco ao material de interesse, uma qualidade apreciável.
         Com a tampa do caixão totalmente removida, o cadáver apresentou-se à luz de velas como uma figura espectral. A pele, antes lívida, tingira-se de um verde azulado. O corpo se avolumara consideravelmente, inflado pelos gases putrefativos, atingindo dimensões gigantescas. Os olhos procidentes assumiram um aspecto cômico. Tão diferente o corpo, agora, de sua aparência inicial.
         Voltei com a tampa no caixão sem recobri-lo de terra; tencionava voltar para novas observações.
        
Passei a visitar regularmente a defunta. Outras mudanças se processaram, aumentando consideravelmente a decomposição. Os gases se evolaram e desaparecera o enfisema. O corpo murchara numa massa disforme. Sobre a coloração verde da epiderme, estamparam-se manchas e retículos escuros. Na fronte enrugada, os cabelos raleavam. Os lábios carcomidos deixavam os dentes expostos num sorriso grotesco. A pele, flácida e solapada, soltava-se do esqueleto.
         Era possível ouvir o frêmito dos vermes, a cada dia mais vorazes, fervilharem na matéria  purulenta.
         Ocupei-me cada vez mais em apreciar a fascinante metamorfose. O processo carecia de um acompanhamento contínuo e exasperavam-me as constantes interrupções ocasionadas por telefonemas e visitas de amigos para conversas triviais, assim como os afazeres rotineiros. Assim, abandonei completamente os compromissos alheios ao meu principal interesse e, ao final de um mês, instalei-me definitivamente no subsolo. Com provisão de comida e água, não dei mostras de minha presença na casa, o que permitiu manter-me com tranquilidade junto ao cadáver. Com ripas e pregos, fechei a janela e a porta do porão a fim de garantir meu isolamento.
         Sem iluminação diurna, passei a usar com parcimônia os poucos restos de velas, pois não seria prudente expor-me na obtenção de um novo suprimento.
         A luz, a cada dia mais débil, não interrompeu minhas atividades, ao contrário, levou-me a um novo experimento: o exame tátil do cadáver. Nas sutilezas das percepções, o tato revelou-se, neste caso, mais interessante que os demais sentidos. Porém, sob a fraca claridade, meus apontamentos diários, os quais tenho mantido com rigor, se tornam uma tarefa penosa ou mesmo impraticável e, por ora, convém encerrá-los.   
         Antes, cumpre registrar que reservo minha apreciação final para a faculdade do paladar.

*  *  *

Para a produção deste conto, foram consultados artigos técnicos sobre medicina  legal   —  Oscar Freire e outros

                                                                         
DATA DA PRODUÇÃO: 1990 - 1994  —  CRÉDITOSConto classificado em 1o lugar no VII Concurso de Contos e Poesias de São Caetano do Sul – DEPC – Premiação por ocasião da cerimônia do Mapa Cultural de 1996 -  Classificado em 5o lugar entre os vinte melhores contos selecionados para publicação pela FAENAC, São Caetano do Sul SP – 2007  —  PUBLICAÇÕES: Histórias Heterogêneas – 1995 – Antologia de Contos do I Concurso de Contos para 3ª idade 2008 (p. 33), SOESC, São Caetano do Sul SP. —  REGISTROS: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais  No 95.185  -  Livro 133  -  Folha 119  -  Data:  31/01/1995;  No  205.836   -   Livro 356  -  Folha 496  -  Data:  21/07/2000.

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