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sábado, 7 de maio de 2011

A CASA VEDADA



A CASA VEDADA

Ubirajara Godoy Bueno


“... num pesadelo sem paz,
sonhamos com o veneno,
que descanso nos traz...”

Rodenbach


        Após cavalgar durante horas por trilhas íngremes e tortuosas, apertadas pela floresta, encontrava-me bastante cansado e ainda distante do meu destino.
         Começara a chover torrencialmente e foi um alívio divisar, logo adiante, a casa que se erguia a meia encosta. O edifício, aparentemente abandonado, servir-me-ia de abrigo se possível fosse ocupá-lo até a manhã do dia seguinte. Podia ser alcançado por um caminho estreito, pavimentado de pedras, que se estendia através de intricados arbustos e touceiras de capins, onde antes, provavelmente, fora um belo jardim. Deixei o cavalo sob o que restara de um grande quiosque e fui ter à frente da casa. A porta não estava trancada à chave e abriu-se ao menor esforço. Provendo-me precariamente de luz com a chama de um fósforo, segui por um corredor que conduzia a uma sala ocupada por móveis abarrotados de livros, prataria e objetos de adorno. Um candelabro com restos de velas ofereceu-me melhor iluminação.
          As janelas eram guarnecidas de cortinas escuras e pesadas, o que provocava uma sensação angustiante de clausura. A poeira em profusão deixava evidente o total abandono da casa. Atravessei a sala incomodado por um natural constrangimento; invadir um local privado, mesmo que obrigado pelas circunstâncias, deixava-me pouco à vontade. Evitei a escada para o andar superior e entrei num cômodo contíguo de menores dimensões, revestido com lambris de madeira e veludo. Uma cama, um   pequeno armário e duas mesas servidas por cadeiras constituíam areduzida mobília. Livros e manuscritos empilhavam-se desordenadamente sobre as mesas. Uma lareira robusta, com restos de madeira e fuligem, ocupava o centro da parede no fundo do quarto. Havia sobre a laje da fornalha uma grande quantidade de retortas, almofarizes e frascos de formas e cores variadas, além de outros instrumentos utilizados para ensaios químicos. Materiais semelhantes encontravam-se num balcão de mármore ao lado da lareira. O odor no quarto denunciava a presença de fungos proliferados pela umidade e ausência de luz.
         Em pequenos nichos havia lâmpadas com sobras de óleo. Entornei-as sobre a lenha da lareira e com as chamas das velas inflamei o combustível, que se avivou rapidamente em grandes chamas, preenchendo o quarto com um calor reconfortante. Com efeito, o bafio desapareceu. Desvencilhei-me da mochila e retirei a capa e os sapatos ainda molhados. Ocupando uma das cadeiras, junto ao calor do fogo, estirei o corpo com um gemido de cansaço.
         Um diário, aberto sobre uma das mesas, chamou-me a atenção. Li-o, a princípio por simples curiosidade, mas logo me despertaram especial interesse os caracteres ali registrados.
         Transcrevo-os agora, suprimindo os pormenores dispensáveis ao entendimento. Tampouco citarei, a favor da discrição, nomes e datas.

          Mudei-me para um sítio, distante e tranquilo, o que me é bastante confortador, visto minha intolerância a qualquer natureza de ruído e a necessidade de isolar-me completamente. Minhas companhias restringem-se a dois velhos empregados e aos animais silvestres.
         É certo que a doença tem evoluído, alcançando níveis insuportáveis. Meus descuidos, ao expor-me à luz do dia, levam-me a uma dolorosa experiência, com o sol a ofuscar e ferir meus olhos como centelhas da mais viva incandescência e a queimar meu corpo com a mesma ardência provocada pelas chamas do fogo. Não padecem pior martírio os que no inferno expiam os seus pecados.  
       A claridade diurna, mesmo atenuada pelas grossas cortinas, é-me prejudicial. Para minha comodidade e segurança, transferi meus aposentos para uma sala do pavimento inferior, cujas janelas mantenho hermeticamente fechadas.   
       Ainda que eu consiga resguardar-me dos efeitos mais cruciais da doença, privando-me da luz, enclausurado às sombras de meus aposentos, permanece em meu espírito um sentimento de angústia e tristeza. (...)

           (...) Minha disposição, a cada dia mais débil, não me permite realizar qualquer atividade, exceto a leitura, alguns traços de escritas e outras pequenas coisas. Foram inúteis minhas derradeiras tentativas de continuar os experimentos químicos. As fórmulas, obtidas até  então, não lograram qualquer efeito sobre a doença. 
         Meu repasto consiste unicamente de vinho e uma reduzida variedade de alimentos adquiridos dos mercadores que eventualmente trafegam pela estrada, não mais me apetecendo as iguarias que antes foram minhas predileções. 
        A meu pedido, foram-se os empregados. Embora seus serviços fossem-me indispensáveis, não seria justo tê-los mantidos por mais tempo no convívio com este lugar, suportando minha penosa  companhia.
          A casa parece impregnar-se da maleficência de minha enfermidade. Uma atmosfera densa, funesta, quase visível e palpável, estende-se por todo o edifício, sobre todas as coisas. O ar insalubre e opressor torna-se, a cada tempo, menos suportável.                                                                                     Reconforta-me,  apenas,  a esperança de alívio no descanso da morte.

         Assim terminava o manuscrito. O pobre homem fora portador de uma fotofobia em grau extraordinário, provavelmente agravada por outras complicações, embora os efeitos exacerbados da enfermidade parecessem-me, inicialmente, sugeridos por uma mente perturbada. Revelara o desejo de entregar-se  à morte,  e imaginei,  com   pesar, que talvez algum recôndito da casa abrigasse os seus restos mortais.
         Aqueles registros haviam me impressionado bastante e, antes de dormir, ocupei-me em transcrevê-los para o meu caderno de viagem.
         Despertei pela manhã após um sono profundo, refeito do cansaço do dia anterior.
         Extinguira-se o fogo da lareira e o mesmo ocorrera com as chamas das velas do candelabro. Nenhuma luz infiltrava-se no aposento, apenas o cantar abafado dos pássaros diurnos anunciava o amanhecer. Ainda sonolento, tateando tropegamente, alcancei uma das janelas do quarto.  Com dificuldade, desloquei o ferrolho e a janela abriu-se, rompendo as heras que se estendiam como uma rede do lado de fora. A chuva havia cessado. O quarto inundou-se da luz branca do sol da manhã e, sob suficiente claridade, iniciei a tarefa de recolher meus pertences.
         Estalidos secos, iguais ao crepitar de lenho em chamas, vieram do piso de madeira e das vigas do teto. Ocorreu-me de início que tais ruídos fossem decorrentes do contato repentino, após longa ausência, da luz e calor do sol no interior do quarto, provocando dilatações abruptas no madeiramento.
         A intensidade e a cadência dos ruídos aumentaram rapidamente num pipocar ensurdecedor. Sob os meus pés, as tábuas do assoalho torceram-se e romperam-se em movimentos quase convulsivos. As deformações estenderam-se aos móveis e lambris, cujas superfícies encarquilharam-se como folhas secas. Em pouco tempo o ambiente assumira um aspecto disforme e ressequido. Um arfar rítmico, opresso, ecoava por todos os cômodos e a casa toda parecia ofegar agonizante.
         Não mais teria sentido atribuir a esses fenômenos as causas que a princípio me pareceram ser as mais simples e óbvias.
          Ao lembrar-me de certo trecho do diário, ocorreu-me então o entendimento por uma destas deduções que às vezes nos sobrevêm ao espírito num lampejo intuitivo enquanto ao mesmo tempo, a razão nega aceitar.
         “A casa parece impregnar-se da maleficência de minha enfermidade”  
         Corri em fechar a janela do quarto e os ruídos cessaram pouco a pouco.
         Prossegui viagem, assombrado por tão estranhos acontecimentos.  
*  *  *


DATA DA PRODUÇÃO: Dezembro/1995  —  CRÉDITOS:  Conto premiado no II Concurso da Casa da Palavra – Santo André SP, em 1993 e no VI Concurso de Contos e Poesias instituído pelo DEPEC – São Caetano do Sul SP, em 1993. —  PUBLICAÇÕES: Contos Noturnos – 1985 – Histórias Heterogêneas – 1995 – Antologia dos vencedores do 2o Concurso de Contos da Casa da Palavra de Santo André SP – 1993. REGISTROS: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No  33.513  -   Livro 28  -  Folha 079  -  Data:  21/02/1985;  No 86.840  -  Livro 116  -  Folha 003 – Data: 09/12/1993;  No 205.836 – Livro 356 – Folha 496 – Data: 21/07/2000 













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