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sábado, 7 de maio de 2011

A HISTÓRIA DE IGOR KIROV



A HISTÓRIA DE IGOR KIROV

Ubirajara Godoy Bueno


     Tudo o que vemos ou julgamos ver
           não passa de um sonho dentro de  um sonho.

  Edgar Allan Poe

O pequeno hotel, de fachada discreta, quase oculto às sombras de um bosque de pinheiros, bem poderia passar despercebido. Mantinha, contudo, um bom número de hóspedes sob os cuidados quase maternais da proprietária do estabelecimento.
          Alguns anos atrás o hotel fora palco de um fato extraordinário, o que lhe tornara singularmente interessante, além dos atrativos de seus apreciáveis serviços.
Sobre a cornija da lareira, o retrato de um jovem de contornos indefinidos mantinha viva a lembrança do que acontecera e transformara-se no centro das atenções. Despertavam igual interesse as histórias sobre o caso, narradas pelos antigos hóspedes que presenciaram o fenômeno, inspirando as mais diversas e controvertidas conjecturas e, não raro, incredulidade.   
         Tal acontecimento deu-se numa noite do inverno de 19..., quando os hóspedes reuniam-se na sala de estar, aconchegados ao calor da lareira, enquanto bebericavam licores e vinhos. Ocupavam as poltronas dispostas em semicírculo, como convém a um grupo ávido por histórias e conversas de toda natureza. Um cirurgião aposentado do exército falava de suas aventuras na época em que  assistia aos soldados durante  os exercícios de  sobrevivência e todos as atenções se voltavam para o velho médico.
         Um leve sopro de ar frio e o som de sinetas anunciaram que alguém acabara de entrar pela porta da recepção. Instantes depois, um jovem desconhecido cruzou a sala e sentou-se numa poltrona junto à lareira. Apenas relanceou os olhos ao seu redor e ali ficou, imóvel, mirando o fogo com os braços cruzados e o corpo encolhido. Apesar do frio, agasalhava-se somente com uma capa de tecido leve. As roupas e as botinas úmidas pelo sereno da noite revelavam que uma longa caminhada fora empreendida pelo visitante. O jovem, muito pálido, sugeria uma estátua de cera prestes a derreter no calor do fogo.
         — Deseja hospedar-se? — perguntou solícita a dona do hotel, enquanto estendia-lhe uma xícara de chocolate quente. 
         — Talvez não seja necessário — respondeu o rapaz com voz débil.  Dispensou a bebida com um gesto de mão e voltou à imobilidade.
         A hoteleira não pôde evitar seu espanto ao contemplar o visitante. Sua pele parecia, vista de perto, um delicado papel alvo quase translúcido. Os olhos profundos eram tênues manchas azuis, como um colorido que o tempo desbotara a quase imperceptibilidade. Com o mesmo aspecto vago e quase irreal apresentavam-se os cabelos, muito claros e compridos. Toda a sua figura assemelhava-se a uma imagem fracamente projetada; nada mais que um espectro.
         Consternada com a situação do rapaz, dirigiu-se ao médico e cochichou-lhe que talvez fosse necessário examiná-lo.
         — Parece estar muito doente— falou aflita.
         Apoiado à bengala que trazia consigo, mais por hábito do que propriamente pela necessidade de firmar o corpo, o cirurgião aproximou-se do visitante. Ao observá-lo, tivera imediatamente a mesma impressão de fragilidade e inconsistência que tanto sensibilizara a proprietária do hotel. Tomou-lhe o pulso demoradamente; depois, deitando a cabeça em seu peito, procurou auscultar-lhe o coração. Experimentara uma sensação estranha e surpreendente ao examinar o rapaz. Havia, no primeiro instante, freado um impulso instintivo de recuar abruptamente diante de um sentimento vago de assombro e aversão, apesar do longo exercício da medicina ter-lhe preparado o espírito para toda sorte de situações e experiências. Não constatara naquele jovem qualquer sinal apreciável de vitalidade. Seu corpo parecia deixar transpassar-se ao simples toque das mãos e tão estranha anomalia não podia ser associada, mesmo que vagamente, a uma enfermidade conhecida ou qualquer disfunção congênita admissível nos padrões humanos. 
— Pouca vida existe neste corpo — murmurou-lhe o jovem, conquanto pudesse ser ouvido por todos os presentes que acompanhavam em silêncio a intervenção do médico.  
         — Pela manhã cuidaremos de lhe fazer mais alguns exames — concluiu o cirurgião, visivelmente perturbado. Voltou à cadeira, desta vez um pouco mais dependente da bengala.  — Um caso excepcional, meu caro Tenente  —  sussurrou a um velho colega do exército que se sentava ao seu lado.   
         — Uma visita inoportuna — desculpou-se o jovem.  — É natural que me julguem um intruso. Talvez tivesse sido melhor eu ter permanecido esta noite em meu quarto, mas reconheço minha fraqueza, admito ter me transtornado a ideia de ficar sozinho quando minha vida parece se dissipar tão rapidamente como o éter que evapora de um frasco aberto.  
          — Não deve dizer estas coisas — repreendeu-lhe a dona do hotel.  — Alguns remédios vão lhe repor a saúde.
— Devo-lhes uma explicação.
— Isso pode esperar  — tornou a gentil senhora, procurando poupar-lhe qualquer esforço.
         — Acredito que não haja tempo — insistiu o visitante, e com os olhos distantes, embora lúcidos, principiou a sua história:
         — Meu nome é Igor Kirov.  Sou filho de emigrantes russos. Apesar de muito pobres, meus pais viviam felizes na casa simples que construíram num sítio não muito distante daqui. Neste lugar nasci e passei toda a minha existência.  Fui o único filho desta feliz união que o destino desatou prematuramente. Minha mãe morreu quando eu contava apenas seis anos de idade. Um mal súbito do coração levou-a ao túmulo em poucos dias. Meu pai, um lenhador rude, porém sensível e dedicado à família, ficou completamente transtornado com o que aconteceu e jamais se conformou  com  perda  tão  dolorosa.  O plano de mudarmos para a cidade foi esquecido e continuamos a viver no pequeno sítio. Meu pai passou a oferecer-me todas as atenções. Levava-me em sua companhia quando saía, ainda de madrugada, para apanhar madeira. Impressionava-me a sua disposição para o trabalho, buscando continuamente na atividade física esquecer a mágoa que lhe consumia como uma doença incurável. Parecia um gigante ao desferir o machado contra as árvores mais robustas da floresta ou quando sobraçava os enormes troncos e carregava-os até a carroça para serem transportados e vendidos na cidade. À tarde, pescávamos ou cuidávamos da horta. Havia decidido que eu passaria a frequentar uma escola; não me queria um lenhador como ele. Certa vez voltávamos da cidade em direção ao sítio, após uma forte chuva durante toda a manhã. A estrada encontrava-se em péssimas condições e o cavalo esforçava-se em puxar a carroça no chão lamacento e escorregadio, apesar do veículo já estar livre da carga de madeira. Estávamos a atravessar um trecho mais estreito quando uma das rodas da carroça encravou num buraco aberto pela chuva. O veículo tombou abruptamente e fui arremessado num despenhadeiro à margem da estrada.  Meu pai conseguiu agarrar-se às rédeas do cavalo, livrando-se de igual destino. Lembro-me vagamente do roçar dolorido das vegetações que revestiam a encosta enquanto meu corpo precipitava naquele buraco medonho e profundo de onde exalava um cheiro acre, como o hálito fétido de algum monstro abrigado em seu interior. Este terrível momento pareceu-me uma eternidade antes do meu corpo chocar-se no fundo do abismo. Falo-lhes de um final previsível, pois, antes que acontecesse, perdi completamente a consciência.      
— Certamente tal fato não ocorreu, considerando-se que ainda está vivo. Deve ter ficado preso nas vegetações  — interpelou o tenente.
          — Recordo-me, apenas, que ao recuperar os sentidos encontrava-me novamente na carroça em companhia do meu pai. Não havia em meu corpo qualquer fratura ou mesmo um simples arranhão que atestassem o acidente. Quanto ao meu pai, falava-me sobre as aulas que começariam na próxima semana e da necessidade de comprar-me cadernos, lápis e livros. Falava-me normalmente, enquanto seguíamos em direção ao sítio, sem qualquer menção do que havia ocorrido. Confuso, atribuí o acidente a um sonho. Era comum eu cochilar no coxim quando voltávamos para casa após o trabalho. Além do mais, não se poderia supor que fosse possível alguém sair ileso daquele buraco. Assim, o fato foi simplesmente esquecido durante vários anos até o dia da morte do meu pai, quando vim a saber o que realmente tinha acontecido. Confidenciou-me ele em seu leito, pouco antes de morrer, um segredo tão surpreendente que deveria eu levá-lo ao túmulo selado em meus lábios. Uma história fantástica que a princípio julguei fruto de sua imaginação, produto apenas dos delírios que normalmente povoam a mente dos moribundos, mas fora verdadeira a sua confissão. Preparou-me o espírito aos fatos que aconteceriam inevitavelmente após a sua morte. Essa revelação lhe foi tão dolorosa que, após expirar-lhe a vida, ainda pude ver, por alguns instantes, as lágrimas escorrerem no seu rosto contraído pela angústia. Meu pobre pai faleceu há poucos dias, vítima da terrível tuberculose, e as imagens que descrevo permanecem nítidas em minha mente.
Igor pareceu fadigar-se sob o peso das lembranças. Seu rosto assumira a cor e a textura de uma névoa e aqueles que o observavam não viam senão a imagem de um fantasma.
— O acidente do qual falei não foi apenas um sonho, conforme eu imaginava. Vou contar-lhes o que me foi revelado exatamente como pude entender, embora não espero crédito às minhas palavras — continuou com uma expressão de cansaço e tristeza. — Logo  após  minha  queda  no  precipício, meu pai, com sua força incomum, levantou o veículo e seguiu viagem em  direção ao sítio.  Ignorava o acidente, refutava a realidade com a mais firme convicção que permite a razão humana. Desejou meu pai, naquele instante, com todas as forças de sua crença, que eu estivesse vivo.  Não admitia uma nova perda de um ente querido. Começou a falar  naturalmente  sobre a escola e outras coisas, como se  buscasse  persuadir a  própria razão, ludibriar a realidade.  E lá estava eu novamente em sua companhia. Talvez apenas a manifestação de uma vontade, ou mais precisamente, a materialização de um corpo ilusório, pois provavelmente encontrava-me sem vida no fundo do abismo. Assim, a despeito do acidente, permaneci ao seu lado durante vários anos e nada me fez diferente de outras crianças e, mais tarde, de outros jovens. Minha vida transcorreu sem qualquer anormalidade.
— Acha realmente que isso tenha ocorrido? — perguntou o médico, surpreendido com a crença do jovem, a qual julgava, no mínimo, extravagante.
— Acredito sinceramente que muitos dos fenômenos que nos assombram ou nos surpreendem de alguma forma, os quais julgamos manifestações sobrenaturais, são projeções momentâneas de nossos medos, anseios e desejos. Meu pai, enquanto vivo, conseguiu alimentar continuamente este processo com o poder extraordinário de sua vontade.  Com a sua morte, interrompeu-se o fluxo de energia que me devolveu a vida e a manteve por muitos anos, se assim podemos definir, simplesmente, esta ocorrência fora do comum. Acabou-se o encanto. Desde então, posso sentir a desmaterialização do meu corpo, a cada instante mais rarefeito, como um líquido que aos poucos se evapora. Meu pai sabia exatamente o que aconteceu naquele dia. Uma experiência tão surpreendente deve ter lhe proporcionado durante toda a  vida um misto de alegria e assombro, mas certamente, acima de qualquer sentimento, afligia-lhe a ideia do fim de minha existência após a sua morte.
         — Às vezes adoecemos seriamente e entregamo-nos a certos devaneios. Damos crédito a nossas fantasias por mais absurdas que sejam — observou o médico, sendo prontamente apoiado pelo seu colega que assentia com a cabeça, penalizado com a provável demência do jovem.
— Os delírios de um louco, se é isso que quer dizer, senhor, seriam, acredito, preferível a uma parcela da realidade que me aflige. Falo-lhes de algo fantástico, assombroso. Uma história inacreditável para as crenças comuns, contudo verdadeira — respondeu Igor Kirov, reclinando-se na poltrona com os olhos baços voltados para o teto. Parecia ser possível divisar o espaldar, no qual se recostava, através do seu rosto que assumira ainda mais um aspecto de quase transparência.
Um sentimento de medo revelava-se em todos os olhares. A suspeita de que algo estranho, incompreensível e assustador estava para acontecer evoluía para a certeza do fato.  
         Uma jovem professora, que se divertia fotografando os hóspedes, desde que chegara ao hotel, apanhou sua câmara e disparou-a em direção ao  visitante. Embora inoportuno, aquele registro serviria como testemunho à posteridade sobre o que acontecera naquela noite.  
— Seu estado exige cuidados imediatos  — alertou uma hóspede que se postara ao lado do jovem e acompanhava apreensiva seu abatimento.    
         — Nada podem fazer a meu respeito, mas reconforta-me a companhia e as atenções que me dispensam, precisamente o que busquei esta noite — balbuciou Igor, como se suas palavras fracas e abafadas ecoassem de um ponto distante da sala.   
— Vamos levá-lo para o quarto — ordenou a dona do hotel, enquanto fazia sinais à camareira para que providenciasse as acomodações.
         Não houve tempo para isso. Nos minutos seguintes, diante dos olhos atônitos dos presentes, o jovem Igor Kirov desapareceu, como as sombras da noite que somem placidamente na aurora.

* * *

DATA DA PRODUÇÃO:  Fevereiro/1998  — CRÉDITOS:  Conto premiado no Concurso Literário 2000 – Secretaria de Cultura e Esporte de Mauá – Dezembro de 2000 — Conto classificado em 4o lugar no Concurso Literário da Academia de Letras da Grande São Paulo – Prêmio ALGRASP 2005. —  PUBLICAÇÃO:  TAMISES 05 ­(2006) – Revista da Academia de Letras da Grande São Paulo — REGISTRO: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No  205.836   -   Livro 356  -  Folha 496  -  Data:  21/07/2000.

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