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sábado, 7 de maio de 2011

O BEATO

O BEATO

Ubirajara Godoy Bueno

Vai-te e seja feito
 conforme a tua fé.

                                                   Mateus 8:13


          Jonas, acotovelado na mesa do bar, bebericava a dose habitual de aguardente. Ruminava seus dissabores, lamentando-se, entre suspiros, do cansaço do dia. Aborrecia-lhe, cada vez mais, a rotina do trabalho. Vestia ainda o uniforme de serviço que pesava-lhe como as roupas de um prisioneiro. Voltar logo mais para casa, junto à mulher e o filho, não o reconfortava, enfastiavam-lhe igualmente os encargos do matrimônio. O casamento acontecera mais pelo pendor à aventura do que propriamente pelos enlevos do amor e logo se cansou da vida em comum, adversa à sua natureza libertina.
Acompanhou sem interesse a entrada no bar de três homens desconhecidos e tampouco percebeu que se armavam de revólveres.
         — Assalto — gritou um deles com arma em punho.
         O aviso calou as conversas e risadas dos poucos fregueses. Em meio a impropérios e ameaças, retiraram o dinheiro do caixa e abasteceram-se de cigarro e bebida.
— Você vai dar um passeio — disse um dos homens antes de sair, apontando a arma para a cabeça de Jonas.  
         Pouco depois, Jonas encontrava-se num furgão que corria para fora da cidade. Encolhia-se no banco enquanto seus raptores dirigiam-lhe sem razão, de quando em quando, uma ofensa qualquer. Tentava prever o que o destino lhe reservava. Tão logo deixasse de ser útil como refém, tornar-se-ia um fardo incômodo e essa certeza veio-lhe como uma sentença de morte. Tomado por súbita iniciativa, dessas que às vêzes nos impele a uma ação imediata em certas situações, mas que passado o momento e não realizado o intento sobrevém o esmorecimento igualmente rápido, abriu a porta do veículo e jogou-se no acostamento. O carro, que havia reduzido a velocidade numa curva obstruída por outro veículo, parou imediatamente.
        Jonas levantou-se e procurou alcançar o abrigo das árvores a alguns metros da estrada. Acobertavam-lhe as primeiras sombras da noite; contraposto, as pernas vagarosas e trêmulas pareciam atadas a barras de chumbo. Ouviu o estampido de um tiro no momento que tropeçava numa rocha e estatelava-se no chão. Imóvel, percebeu o carro se afastar. Deduziu que o julgaram morto, e assim estaria não fosse a sorte do momento.
         Levantou-se e sentiu um forte ardor na cabeça. A bala tinha lhe triscado a fronte esquerda. Tentou caminhar em direção à estrada, mas desfaleceu em seguida.

*

         — Hei amigo! Consegue se levantar?
         Primeiro a imagem desfocada, depois, brilhante e distorcida, como se refletida por um espelho deformado. Finalmente Jonas divisou com nitidez a cara redonda do homem agachado à sua frente.
         Colocou-se de pé num pulo, mas sentou-se com a mesma rapidez, levando as mãos à cabeça que ainda doía-lhe. Sentiu os cabelos impregnados de sangue e terra.
— É preciso ter cuidado — aconselhou o homem com sotaque espanhol, auxiliando-o a levantar-se novamente.
         O sol da manhã fez Jonas se dar conta de que permanecera inconsciente durante toda a noite. Esfregou os olhos congestionados e estendeu a mão ao espanhol.
         — Jonas.
         — Diego, o mascate, ao seu dispor.
         Assim, sucintamente, deram-se as apresentações.
         — Melhor lavar a ferida – disse o espanhol, apontando para uma nascente. 
         Retirou o sangue ressequido dos cabelos e tateou o ferimento para avaliar sua extensão. Comentou o ocorrido da última noite maldizendo os momentos pelos quais passara.
         — Estou seguindo de carro em outra direção, mas se quiser, posso deixá-lo na próxima cidade  —  propôs o mascate.
         Jonas concordou prontamente. Não lhe restava outra opção.
         — A nascente é conhecida pela maioria dos viajantes — comentou o espanhol, enquanto abastecia um balde com a água que vertia entre duas rochas e corria no solo por um canal estreito. — Deram-lhe o nome de “bica da ressaca”, quando por aqui passavam os tropeiros — completou com uma risada, onde reluziu um friso de ouro.
         Tomou o caminho de volta com passos medidos para não entornar o vasilhame.
         Podia se dizer uma figura singular. Ligeiramente gordo, tinha uma barriga proeminente, pouco escondida por um gibão de couro enfeitado com penduricalhos de latão. Da orelha esquerda pendia uma pequena argola de ouro. Os cabelos lustrosos e o bigode fino eram pretos e lisos. Na cabeça, assentava uma boina xadrez. Sugeria um duende de proporções avantajadas. Não era difícil deduzir que descendia de ciganos.
        Chegaram a uma velha caminhonete estacionada à margem da estrada. A carroceria abarrotava-se de mercadorias sob um impermeável desbotado. Após repor água no radiador do veículo e verificar os amarrilhos da carga, o espanhol prosseguiu viagem.
         Dirigia sem pressa abanando-se com jornal para se arrefecer do mormaço da cabine. Jonas, indiferente ao calor, ponderava sobre os últimos acontecimentos. Certamente, Angelina, sua mulher, havia sido avisada do sequestro. O dono do bar tinha o seu endereço no caderno de fiados. Talvez já o considerassem morto, mas logo estaria de volta e contaria a todos sobre a sua fuga heroica. O acontecimento repercutiria por toda a cidade, seria o assunto principal das conversas e talvez o fato ganhasse uma reportagem no periódico. Mas por que não deixar as coisas do modo que estavam? Esta possibilidade desviou-lhe de súbito o espírito para outros propósitos. A mulher era boa costureira e poderia garantir o sustento da casa. Na condição de viúva, haveria também o dinheiro da pensão. A chance de conquistar a liberdade, desvencilhando-se da família sem mágoas e rancores, antes, ser lembrado como um mártir ou herói,  estava  agora  em  suas  mãos.   Buscaria algum lugar distante e, no momento, ocorria-lhe ir ter com a capital. Essa ideia sempre lhe fascinou. Estava decidido desta maneira.
         Precisaria de dinheiro. Deduziu que o espanhol dirigia algum tipo de comércio e talvez pudesse ajudá-lo. Pouco à vontade, falou sobre o que pretendia, oferecendo o seu trabalho por algum tempo.
         — Não quer voltar para a gaiola - disse Diego em tom jocoso sem, contudo, falar sobre a proposta recebida.
         Jonas deu de ombros. Insistiria no assunto mais tarde ou pensaria noutra solução. Retirou da carteira o retrato do filho e ficou a mirá-lo entre as mãos. A mãe era zelosa e cuidaria do garoto.
         — Belo niño 1comentou o espanhol, espiando com rabo de olho.
         — Faz seis anos o mês que vem.
         Guardou a fotografia e se aquietou pensativo.  Ivan, miúdo e serelepe, único filho de um casamento malfadado. Lembrou-se do garoto na noite anterior ao incidente. De cócoras, num canto da sala, realçando o corpinho magro e frágil, entretinha-se numa delicada confecção. Costumava presentear o pai com pequenos artesanatos aprendidos na escola. Desta vez tratava-se do perfil de uma ave recortado em madeira, sendo pacientemente revestido com penas de galinha untadas com uma goma de cheiro forte.
         Por um momento, pensou abandonar seu plano, mas acabou firmando a ideia de levá-lo a cabo. A intenção de ficar na próxima cidade foi descartada; continuaria com o mascate até o final da viagem, depois decidiria o que fazer.
                                                                                                                           (1) niño = menino
*

         A caminhonete foi estacionada na periferia de uma pequena cidade, junto a uma tenda espaçosa onde havia um comércio clandestino de roupas e todo tipo de quinquilharias.
         — Chegamos — anunciou o espanhol, espreguiçando o corpo molhado de suor.
         Foram recebidos por um jovem negro chamado Tobias. Um empregado sorridente e prestativo. Antes de ocupar-se em retirar as mercadorias da caminhonete, cuidou do ferimento do visitante, enfaixando-lhe a cabeça.
         — Meus lucros são parcos para manter além de um ajudante — começou Diego, respondendo com rodeios, somente agora, a proposta de Jonas.  — Antigamente dinheiro não faltava.
         Entrou na tenda, e após vasculhar um baú, localizou uma fotografia amarrotada e exibiu-a para Jonas. Mostrava um homem com barba e cabelos desgrenhados vestindo uma espécie de túnica branca.
         — Malaquias, o milagreiro. Não fosse a bebida e o coração doente, estaríamos ricos – falou Diego com pesar. — Conheci  Malaquias  num  lugarejo  do Norte.  Tinha  habilidade  em preparar remédios com folhas e raízes. Entendia do assunto como ninguém, mas o que ganhava com as vendas dos remédios mal dava para o seu sustento. Propus sociedade, ampliar o negócio e aumentar os lucros. Acabei convencendo Malaquias a acompanhar-me para outra cidade. Em apenas alguns meses, as vendas quadruplicaram.  Aconteceu, um dia, de Malaquias aplicar uma benzedura, o que não era o seu costume, numa  senhora que  ardia em febre.  Em pouco tempo, a febre passou completamente e sendo esta senhora pessoa influente na cidade, a notícia da cura correu num piscar de olhos. Malaquias ficou conhecido como o milagreiro, para alguns, um verdadeiro santo. Além de preparar remédios, passou a oferecer serviços de rezas e simpatias. Os donativos eram frequentes e generosos. Malaquias, com o coração fraco e abusando da bebida, morreu em pouco menos de dois anos e as coisas voltaram a ser como antes.
        Diego mirou o retrato do falecido, comprimindo a boina contra o peito.
         — Foi uma pena — falou num suspiro, pensando mais nos lucros interrompidos do que propriamente na perda do amigo.
         Voltou ao baú e de lá retirou, embrulhados em jornal, um roupão branco e um caderno encardido pelo manuseio.
         — Cá estão a roupa de Malaquias e as receitas de seus remédios.
Entregou-as para Jonas; depois, abrindo os braços, anunciou:
         — O emprego é seu.
         Jonas voltou-se surpreso para o espanhol e recusou abanando a mão.
         — Não daria certo.
         — Está tudo anotado no caderno. Tobias e eu não temos jeito para a coisa.
         — Não acredito em rezas e simpatias  — contrapôs Jonas com firmeza.
         — Acho que o próprio Malaquias não acreditava. A fé será deles e não sua. O milagre nasce da crença de cada um. Em pouco tempo, terá o dinheiro de que precisa. Algibeira cheia amigo, algibeira cheia — enfatizou Diego, alteando a voz e dando palmadas no bolsinho do gibão.
         Jonas abanou a cabeça indeciso, mas prevendo que acabaria cedendo à proposta de Diego. E assim aconteceu. Concordou finalmente com o trabalho e o espanhol providenciou a transferência da tenda para uma cidade distante e mais populosa.

*

         O ferimento na cabeça não exigia mais cuidados. A cicatriz camuflava-se gradativamente sob os cabelos compridos. A barba, por comodidade, ou em função do novo ofício, não fora mais cortada. Assim, encontramos Jonas, um mês depois, entoando rezas e prescrevendo medicamentos aos fregueses persuadidos pelas propagandas feitas por Diego. Mas faltava a centelha principal para desencadear os negócios nas proporções almejadas pelo espanhol.
         Tobias, em visitas a parentes distantes, não havia acompanhado o patrão na viagem de mudança. Todavia, a volta do empregado serviria aos planos de Diego.
         Tão logo retornou, o fiel Tobias dispôs-se ao que fora combinado antes de sua partida. Aproximou-se da barraca arrastando de uma perna, numa encenação ensaiada de véspera. A presença de fregueses vinha a calhar. O papel de um jovem coxo recebeu a aprovação do espanhol que discretamente lhe piscou o olho.
         — Procuro um homem chamado Jonas — falou em voz alta, enquanto andava sobre a perna manca.
         Diego levou-o até Jonas que, neste momento, deixava seus afazeres para apreciar a cena, mal contendo um acesso de riso. Sabendo de antemão o que fazer, passou a untar a perna do amigo com um óleo de cheiro acre, rezando ladainhas improvisadas.
         Finalizado o processo, que não demorou mais que um minuto, Tobias esticou a perna, girou o tornozelo de todas as formas possíveis e bateu o pé de encontro ao chão, como se testasse um equipamento recém-reparado. Em seguida, pôs-se a caminhar com passos ágeis diante dos espectadores surpresos.
         — Estou curado! — exclamou, arregalando os olhos grandes. Dirigindo-se a Jonas, beijou-lhe as mãos.
         Os burburinhos dos fregueses transformaram-se em alaridos e houve até uma senhora, que tomada pela emoção, desfaleceu, sendo prontamente atendida pelos presentes.
         Mais tarde, no interior da barraca, longe de olhos estranhos, Tobias repetia a encenação, exacerbando alguns detalhes para a diversão dos companheiros. Diego havia anunciado aos frequentadores da tenda que o jovem agraciado pela cura seria mantido em sua companhia por tempo indeterminado. O que faltava estava feito.
         O suposto milagre teve uma repercussão extraordinária. A fama de Jonas espalhou-se aos quatro ventos e, ao cabo de um ano, era comum viajantes vindos de lugares distantes procurarem os seus serviços. Chamavam-lhe de Beato, o nome verdadeiro já não importava.  A barba e os cabelos longos, somados à túnica, conferiam  à  sua  figura algo místico, bem ao gosto do espanhol, que costumava dizer que o companheiro saíra melhor que a encomenda. A aguardente fora vedada pelo patrão e a lembrança da família embotada por vontade própria.

*

         À noite, uma pequena multidão se aglomerava defronte à barraca, como mariposas atraídas pela luz.
         — Ficará boa, minha senhora — prognosticou Jonas, examinando a vermelhidão nos braços de uma paciente. — Um caso grave de asma, será preciso compressas e xarope – dizia a um segundo.
         — Deixem a senhora passar com a criança – gritou Tobias, seguindo à frente entre os presentes para dar passagem à mulher que acabara de chegar. 
         Sob a claridade mortiça dos lampiões, Jonas reconheceu Angelina. Nos braços, a esposa trazia o filho Ivan. As perninhas atrofiadas pendiam sem vida vitimadas pela paralisia.
         — Vim pedir-lhe, senhor, a cura do meu filho  ¾  falou a mulher, sem reconhecer o marido, depositando aos seus pés a criança inválida.
         Jonas voltou-se para o filho. O coração opresso, a alma dilacerada por tão atroz provação. Os olhos inundaram-se de tristeza e lágrimas. As mãos, crispadas, pousaram sobre a cabeça do menino. Balbuciou. A voz embargada pela emoção.
         O garoto sentou-se com dificuldade. Agarrando-se a túnica do homem que a mãe dizia iria curá-lo, tentou firmar-se nas pernas bambas. Cambaleou.  Apenas dois ou três passos e caiu. Olhou para o pai irreconhecível, imóvel à sua frente. Teimou ficar em pé. Titubeou nas perninhas raquíticas e, num esforço maior, caminhou trôpego em direção à mãe que aos prantos o esperava com os braços estendidos.
         Voltou com passos tímidos e ainda inseguros, mas livres da atrofia. Entregou ao beato o presente que há tempo havia feito para o pai desaparecido — uma ave de madeira revestida de penas.
         Jonas recolheu-se à tenda num estado de quase torpor.  Carregava junto ao peito a ave de madeira, e quem dera pudesse enterrá-la no coração.

* * *

DATA DA PRODUÇÃO: Março/1989  — PUBLICAÇÃO: Histórias Heterogêneas 1995 —     REGISTROS:  Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No  86.840 - Livro 116 – Folha 003  -  Data: 09/12/1993; No 205.836  - Livro 356 - Folha 496  -  Data: 21/07/2000.

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