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sábado, 7 de maio de 2011

EM FAMÍLIA

EM FAMÍLIA

Ubirajara Godoy Bueno
                                           
                                           

          Cuidadoso com a saúde, senhor Modesto procurou um médico aos primeiros sintomas da doença. Os exames revelaram um mal incurável de extrema gravidade.
         À noite, durante o jantar, resolveu comunicar o fato à família. Não que o momento fosse apropriado, mas era quando a mulher e os dois filhos se reuniam por alguns instantes.
         Sem apetite, afastou o prato. Pesaroso, acotovelou-se na mesa e cruzou as mãos sob o queixo.
        
Devo dizer-lhes – começou com voz taciturna – que tenho pouco tempo de vida. Minha enfermidade é bastante grave e não há esperanças de cura.
        
Você vai morrer? – inquiriu a filha de nove anos.
         Confirmou com um movimento de cabeça.
É melhor que saibam a verdade.
        
Os exames não podem estar errados? – perguntou a mulher com a voz afetada pela batata assada que trazia na boca.
        
É pouco provável  —  respondeu num suspiro.
         O primogênito, um rapagão de quinze anos, limitava-se em franzir o cenho sardento.
Não fosse  o  apetite   voraz,   o  jantar  teria  sido momentaneamente interrompido.
       Pouco mais tarde, após a sobremesa, a conversa continuou durante os intervalos da telenovela.
        
Melhor vender a alfaiataria. Zezinho não tem jeito para a coisa – sugeriu o marido.
        
Quero ser jogador de futebol – falou o filho, reforçando sua aversão pelo ofício do pai.
        
Pensão de viúva não é grande coisa, mas dá-se um jeito – comentou a mulher com ares de dar dó.
         O senhor Modesto lembrou a esposa que o seguro de vida seria de grande ajuda.
        
Vai dar para comprar os patins? – perguntou a caçula entusiasmada.
         O irmão mostrou-lhe a língua acompanhado de um cocorote. Há muito pleiteava uma motoneta e, por direito, tinha prioridade de escolha.
        
Primeiro o carro  —  falou a mãe com autoridade.
         Após o consenso de que o carro seria de mais utilidade, a discussão girou em torno da marca, cor e modelo a serem escolhidos.
         O senhor Modesto advertiu que o enterro poderia ser dispendioso, procurando conter a euforia da família que já se punha a fazer uma lista das próximas aquisições, incluindo um roteiro de viagens.
         Todos emudeceram. A mulher mostrou-se deveras preocupada.
        
Talvez um caixão simples não custe caro – falou esperançosa, procurando, no seu dever de mãe, espantar o repentino esmorecimento que abatera sobre os filhos queridos.
         Decidiu ligar para o serviço funerário.
         “Atendimento 24 horas. Super Promoções”, dizia o anúncio das Páginas Amarelas.
        
Sim, sim. Não, mais simples. Está bom. Quanto?  Hum... E se tirar o revestimento?  Sei... Papelão!?  E se cair?
         A negociação com a funerária parecia durar uma eternidade. Os filhos aflitos permaneciam em silêncio, imóveis. Tentavam interpretar cada gesto da mãe.
         Finalmente o telefone foi desligado. As despesas  não seriam nenhuma exorbitância, conquanto o féretro fosse dos mais simples. O cunhado possuía um jazigo à disposição dos familiares, o que evitaria gastos maiores.
         Os ânimos voltaram. Senhor Modesto sorriu aliviado, não queria causar maiores problemas.
         Alguém sugeriu pipoca com guaraná e a lista foi terminada.
         A coesão do grupo não suportou mais tempo. A caçula foi estudar para as provas escolares; o irmão, sobraçando uma pilha de discos, escapuliu para a casa de um amigo e a mãe concentrou-se na televisão.
         Senhor Modesto, por sua vez, recolheu-se ao quarto. Ocupou-se algum tempo em relacionar alguns bens que deveriam ser doados a parentes e amigos. Pequenas coisas que não interessavam aos seus.


         Na noite seguinte, senhor Modesto atrasou-se para o jantar; estava ao tele- fone.  Finalizada a conversação, sentou-se à mesa com a família e participou-lhes a novidade:      
        
Acabo de falar com o hospital. Houve um grande equívoco, acho que trocaram os exames. Na verdade, minha doença não passa de uma gastrite.
         Enrubescido, encabulado pelo mal entendido, mal conseguira articular as palavras.
         Mãe e filhos entreolharam-se atônitos.
         Os olhos da filhinha lacrimejaram. O par de patins teria que esperar. Zezinho deu de ombros. Poderia usar, ainda que de vez em quando, a motoneta do primo.
      
Mereciam ser processados – falou a mulher incon- formada empurrando o prato. Desta vez o apetite sucumbiu. Mas... o que haveria de se fazer?!
         Senhor Modesto seguiu o exemplo da terna companheira: dispensou o jantar e, cabisbaixo, dirigiu-se à poltrona da sala. Sentia-se um desmancha prazeres.


*  *  *

DATA DA PRODUÇÃO:  1995  — CRÉDITOS:  História incluída entre os 10 melhores contos no concurso realizado pela Secretaria de Estado da Cultura SP em 1995, MAPA CULTURAL. —     PUBLICAÇÕES:  Antologia Mapa Cultural 1995 – Jornal ADC Rhodia (Santo André), ano II, edição 18, julho de 1996 – Cadernos de Cultura & Educação, ano II, número 5. —  REGISTRO: Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No  205.836 - Livro 356  -  Folha 496  Data:  21/07/2000.

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