DEIXA ESTAR
Ubirajara Godoy Bueno
Senhor Cornélio amava a esposa como antes. Os anos não esmoreceram seu amor, ao contrário do que habitualmente acontece após os enlevos passageiros do matrimônio.
Desentendimentos? Certamente ocorriam um ou outro, mas nada que não fosse resolvido pelo senhor Cornélio, homem prático e compreensível. Intrigas? Ora, qual casamento está livre dos mexericos das vizinhanças, principalmente numa cidade pequena. O marido entendia, pelo seu apurado senso de análise, que se tratavam apenas de manifestações invejosas daqueles que se incomodavam com sua união duradoura e sólida e, por que não dizer, exemplar. Duvidar da honestidade da mulher era algo que jamais lhe passou pela cabeça. Por que suspeitar de seus atrasos na volta do trabalho se o patrão vivia a lhe exigir horas extras; quando não, eram as amigas que lhe pediam companhia após o expediente para trocarem confidências ou se ocuparem com conversas triviais. Afinal, a mulher era solícita e sociável. Não haveria de se estranhar suas constantes viagens a negócios; seria o mesmo que não dar crédito ao seu desempenho profissional.
Entretanto, há momentos em que o mais equilibrado dos homens se rende à desconfiança, e parecia ser o caso do senhor Cornélio naquela noite. Caminhava de um lado a outro da sala com ares de quem está entregue às reflexões. Segurava o envelope, ainda fechado, que alguém introduzira pelo vão da porta. Um envelope branco e pequeno onde se lia numa caligrafia redonda de colegial: “Quem avisa amigo é”. Aparentava letra feminina e não trazia, obviamente, o nome do remetente.
Podia imaginar o conteúdo da carta. Ensaiou abrir o envelope, mas, em vez disso, comprimiu-o com as mãos num gesto impulsivo. Sentou-se em uma das poltronas da sala e ficou imóvel; o rosto contraído, olhando fixamente os próprios pés. Acudia-lhe um turbilhão de pensamentos; coisas que jamais ousou supor. A mulher estava ausente, o que lhe deixava mais à vontade para atinar sobre o que fazer.
Depois de muito pensar, desferiu um soco no joelho e levantou-se num pulo. Faria o que cabia a um marido sensato na mesma situação. Resoluto, foi até a cozinha e apanhou uma faca, mas em seguida optou por uma tesoura. Sim, uma tesoura seria mais adequada. Da caixa de ferramentas retirou uma luva de couro. Senhor Cornélio era metódico e prezava a segurança.
Antes de qualquer coisa, acendeu o fogão e ateou fogo à carta. Calçou as luvas, apanhou a tesoura e dirigiu-se ao jardim nos fundos da casa. Podou algumas rosas e, caprichosamente, preparou um buquê. Uma singela oferenda à mulher. Era o mínimo que podia fazer no momento para se redimir dos pensamentos ruins que lhe ocorreram.
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DATA DA PRODUÇÃO: Junho / 2009 — REGISTRO: Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais No 474.325 - Livro 894 - Folha 134 - Data: 06/10/2009
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