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sábado, 7 de maio de 2011

O BOM FILHO

O BOM FILHO

Ubirajara Godoy Bueno



       Naquela tarde, animara-se em caminhar até os arrabaldes da cidade. Andar lépido e corpo ereto, como um soldado em marcha. Embora uma tênue palidez persistisse no rosto encovado, notava-lhe boa disposição. A saúde débil, que no passado o abatera, revigorava-se a cada dia e forças novas tonificavam-lhe os ânimos, acendendo em seu espírito um formidável otimismo. Conseguira emprego com remuneração acima de suas pretensões e adaptara-se perfeitamente a um pequeno hotel de boa cama e comida.
         O chamado, vindo de algum ponto da rua, interrompeu-lhe o passeio e o devaneio. Virou-se confuso de um lado a outro, olhou à frente e atrás de si.
— Aqui! Deste lado – orientou a voz.
         Atravessou a rua estreita e foi ter com uma antiga casa que lhe era particularmente conhecida.
         —Tua aparência esta ótima, caro JJ! Alegra-me ver-te novamente – declarou a voz com entusiasmo.
         — Quem me fala às escondidas?
         — Sou eu quem te dirige a palavra e estou à vista como podes constatar.
          — Perdoe-me. Talvez me falte a devida atenção, pois não vejo ninguém.
        — Não reconheces a tua antiga casa e que abandonaste como um filho ingrato? — respondeu a voz, assumindo uma entonação melancólica.
         JJ examinou a fachada da casa com o mesmo cuidado e curiosidade de quem procura o fundo falso de uma caixa mágica.
         — Percebo que te surpreende minha queixa, mas não mais voltaste ao menos para uma breve visita.  
         — Surpreendem-me, na verdade, paredes que falam — corrigiu JJ.
         — Agradeça, antes, pelos teus ouvidos aguçados, livres da surdez que acomete a maioria dos homens e leva-os a escutar apenas aquilo que lhes convém. Mas, se estou sendo inoportuna, posso calar-me imediatamente.
         — Por favor, continue — pediu JJ,  um pouco envaidecido. 
         — Lembra-te do pequeno bangalô de tua infância? É provável que tenha sido destruído para dar passagem às novas avenidas – comentou a casa em voz baixa de profundo pesar.
         — Bem sei. Já se foram o parque e o campanário – lamentou JJ, correndo a mão magra pelos cabelos em desalinho.
         — Quanto a mim, que te acolhi em tua vida adulta, com certeza terei o mesmo fim. Serei apenas um estorvo para a cidade que cresce com edifícios novos e modernos. Não tenho pretensões de eternidade, mas não posso aceitar resignada meu súbito fim.
         JJ comprimiu os olhos congestionados, desgostava-lhe a situação da amiga.
         — Enquanto encontrar-me só – continuou a casa em seu lamento — não me sentirei segura.
         — Ouço as vozes de teus inquilinos. Por certo não te falta companhia – acudiu JJ, apontando as janelas de onde vinham vozes abafadas.
         — São apenas moradores temporários. As pessoas não se prendem mais a lugar algum, porém, em tua compreensão e amizade assentam minhas esperanças de ajuda.
         — Não me ocorre como poderia te prestar algum auxílio.
         — Volte para esta casa, e que desta vez seja longa a tua estada  veio prontamente a resposta.
         E seria o bastante tão simples providência? 
 O suficiente para que os meus préstimos sejam reconhecidos e minha existência justificada. Caso contrário, em pouco tempo estarei reduzida a quartos vazios. Uma habitação sem serventia, condenada à demolição. Além do mais, ofereço-te mais conforto e segurança do que aquele estreito quarto de hotel em que ora resides.
         A maneira pela qual esta informação chegou ao conhecimento de sua amiga ele ignorava totalmente.
         — Hás de  convir  que  proponho  algo  de interesse comum – completou a casa.
         JJ, de braços cruzados, permaneceu em silêncio apoiado à parede. A cabeça pendia como a de um pássaro sonolento. Após algum tempo, que pareceu de profunda reflexão, declarou com veemência:
         — Vou ajudar-te conforme o teu desejo.
         Empertigou-se e caminhou resoluto para o portão do pátio que oferecia passagem à velha construção.
         — “O bom filho à casa torna” —  a frase fora sussurrada atrás de si numa entonação quase melodiosa.
         E JJ seguiu manicômio adentro.

* * *
 ( primeiro conto-  1981 )

DATA DA PRODUÇÃO: 1981  —  CRÉDITOConto classificado para publicação no Concurso Literário de São Caetano do Sul SP 2006 — PUBLICAÇÕES: Contos Noturnos 1985, Histórias Heterogêneas 1995. —  REGISTROS:  Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais
no 33.513  -  Livro 28  -  Folha 079  -  Data: 21/02/1985;  No  205.836   -   Livro 356  -  Folha 496  -  Data:  21/07/2000.



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